Thinkstock: Estudos recentes mostram que nosso corpo possui cerca de 500
bactérias desconhecidas
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O estudo dos micro-organismos em nosso corpo revoluciona o
diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças como obesidade, câncer e
diabetes
Em nosso corpo, há dez bactérias para cada célula. Juntos, esses 100
trilhões de micro-organismos pesam em torno de 2 quilos — cerca de 500
gramas a mais que nosso cérebro. E é a partir desses minúsculos, mas
poderosos, micróbios que uma revolução está acontecendo na medicina. A
identificação e estudo do microbioma humano — nome dado a esse conjunto
de bactérias — pode, em menos de uma década, transformar o diagnóstico,
prevenção e tratamento de doenças como obesidade, câncer, diabetes ou
transtornos mentais.
“Em pouco tempo, vamos tomar medicamentos compostos de bactérias para
tratar a depressão, em vez de Prozac”, afirma o médico e neurocientista
John Cryan, que estuda a relação entre o microbioma humano e o cérebro
na Universidade College Cork, na Irlanda. “Estamos estudando o
funcionamento disso em humanos, mas os resultados são promissores e a
ciência está avançando tão rápido nesse campo que, em um ou dois anos,
deveremos ter publicações científicas capazes de produzir esse tipo de
droga.”
Projeto Microbioma Humano
O conhecimento sobre as
bactérias que nos compõem é recente. Pelo menos desde o início do século
XX os cientistas sabem que as bactérias que vivem em nosso corpo ajudam
na digestão e na absorção de energia. O que os pesquisadores não sabiam
é que o número de micróbios convivendo conosco era tão vasto e que sua
atuação vai além da quebra e produção de substâncias em nosso corpo,
podendo ser determinante no combate de doenças e até em nosso
comportamento.
O ponto de partida para essa descoberta foram dois estudos publicados
em 2004 sobre a atuação desses micro-organismos no comportamento e no
desenvolvimento de quadros de obesidade. Pesquisadores japoneses
mostraram que camundongos biologicamente alterados para crescerem sem
nenhuma bactéria exibiam níveis muito elevados de hormônios do stress.
Nos Estados Unidos, uma equipe de cientistas mostrou que o mesmo tipo de
camundongo tendia a ser mais magro que os animais normais — e ganhava
peso se recebesse as bactérias de um camundongo comum. Foi o
gatilho para que diversos grupos ao redor do mundo se interessassem pelo
assunto, que poderia ser o elemento que faltava para a compreensão de
doenças crônicas como diabetes ou Alzheimer.
Três anos depois, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos
(NIH, na sigla em inglês) começaram o Projeto do Microbioma Humano, com
o objetivo de mapear todas as bactérias de nosso organismo. Usando o
conhecimento de sequenciamento de DNA do Projeto Genoma, também do NIH,
80 instituições de pesquisa mostraram que somos formados de mais
bactérias que células. Essas primeiras informações, publicadas em 2012,
serão compiladas e decifradas até 2015, quando termina o programa que já
consumiu 153 milhões de dólares (cerca de 350 milhões de reais) do
governo americano. Na Europa, um consórcio entre instituições de oito
países começou em 2008 o mesmo trabalho.
Em conjunto, os dados desses dois projetos provocaram a explosão do
número de estudos sobre o impacto das bactérias na saúde humana. No ano
de 2004, o site PubMed, que compila publicações científicas reconhecidas
internacionalmente, registrava 166 estudos. Só nos oito primeiros meses
de 2014, foram publicadas 2.141 pesquisas sobre o assunto — doze vezes
mais que há dez anos.
“Vivemos uma nova compreensão do que são as doenças e a manutenção da
saúde”, diz o gastroenterologista Dan Waitzberg, professor da
Universidade de São Paulo (USP). “Estudos recentes mostraram que nosso
corpo possui cerca de 500 bactérias que jamais tinham sido vistas. Esse é
um campo extremamente desconhecido e que está trazendo muitas
revelações para a medicina.”
Evolução médica
De acordo com Waitzberg, o
conhecimento que virá da análise e interpretação do microbioma terá
impacto profundo em todos os campos da saúde. “Em cerca de cinco anos,
máquinas mais potentes de sequenciamento de genes poderão fazer o mapa
da composição das bactérias de cada indivíduo. Com ele, será possível
melhorar o diagnóstico e a prevenção de doenças, pois a falta ou
multiplicação de alguns grupos de micróbios pode indicar a presença ou o
potencial desenvolvimento de enfermidades”, diz o médico.
Além disso, o conhecimento do tipo de bactérias presentes em nosso
corpo também produzirá novos medicamentos para tratar enfermidades que
ainda são um desafio para os cientistas, como diabetes ou câncer. A
aposta dos cientistas é em probióticos, isto é, bactérias vivas
consumidas na forma de iogurte, leite fermentado e cápsulas, normalmente
usados para melhorar a digestão, ou em medicamentos que combinem tipos
específicos de bactérias para agir diretamente nas enfermidades. Os
cientistas já sabem que pessoas com câncer de cólon têm alterações
importantes nas bactérias desse segmento do intestino. Assim, equilibrar
esse microbioma por meio de uma drágea poderia ser uma maneira de
prevenir a incidência da doença e impedir seu crescimento.
“Nos próximos três anos, haverá muitos probióticos novos no mercado
— já há alguns na Anvisa, aguardando a aprovação. Eles serão um apoio
para a dieta, que tem grande influência no microbioma e será modulada de
forma a melhorar a saúde e prevenir doenças”, afirma Waitzberg.
Outro campo promissor é o que está sendo estudo pelo grupo do
epidemiologista brasileiro Luis Caetano Antunes, pesquisador da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Em uma pesquisa publicada no
fim de julho na Revista da Sociedade Americana de Microbiologia,
Antunes demonstrou como uma substância produzida por um dos grupos de
bactérias presentes no intestino é capaz de barrar a infecção causada
por Salmonella.
“Essas moléculas produzidas pelos micróbios do nosso corpo que
impedem infecções traz grande potencial terapêutico. Da mesma forma que
elas impedem a Salmonella, poderiam combater qualquer outro
tipo de infecção”, diz Antunes. “São trilhões de bactérias, milhares de
espécies que podem gerar centenas de novos produtos interessantes para
nossa saúde.”
O objetivo do laboratório de Antunes, um dos únicos no Brasil que se
dedicam a estudar o microbioma humano, é desenvolver novos tratamentos
para a tuberculose. “Se encontrarmos bactérias do trato respiratório que
produzam moléculas capazes de combater essa doença, podemos desenvolver
um tratamento adicional. Será um apoio para os médicos e uma
alternativa quando os antibióticos não fizerem efeito, como é o caso de
bactérias multirresistentes.”
Combate à obesidade
A relação do microbioma humano
com a obesidade e o comportamento humano são as duas áreas com
pesquisas mais avançadas. Há alguns anos, os cientistas sabem que há uma
relação próxima entre a obesidade e alterações na flora intestinal.
A progressão dessas pesquisas, que deverá determinar se é um
organismo obeso que produz alteração na microbioma intestinal ou o
contrário, poderá transformar a forma de combater a epidemia mundial que
atinge quase um terço da população, além de fornecer pistas sobre o
funcionamento de doenças relacionadas a ela, como diabetes. Os últimos
estudos, no entanto, mostram que as bactérias de nosso intestino podem
ter uma atuação muito mais complexa que uma simples relação de causa e
efeito. Elas poderiam manipular o comportamento humano para ingerir
certos tipos de alimentos.
Um estudo publicado no início de agosto no periódio BioEssays,
por pesquisadores da Universidade da California em São Francisco e da
Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, mostrou que, produzindo
toxinas, hormônios e neurotransmissores similares aos humanos, as
bactérias podem ser capazes de alterar nosso humor ou influenciar a
transmissão de impulsos de fome ao cérebro. Assim, elas poderiam ter uma
alimentação boa para elas e ruim para nós.
“Estamos começando a entender a obesidade como um problema que tem a
ver com nossas bactérias, não só com a dieta. Acreditamos que
elas tenham motivo e meios para mudar nosso comportamento. E esses
efeitos podem causar obesidade”, diz o médico Joe Alcock, pesquisador da
Universidade do Novo México e um dos autores do estudo. “No entanto,
não sabemos ainda se o microbioma seria uma causa importante para a
doença e outros transtornos alimentares ou apenas mais um dos fatores
envolvidos na obesidade.”
Domínio saudável
Com esse mesmo mecanismo de
manipulação, as bactérias do nosso corpo podem exercer um papel
fundamental em distúrbios como stress, depressão ou autismo. Estudos
liderados pelo neurocientista John Cryan, desde 2009, mostram que a
microbiota do intestino tem grande influência no desenvolvimento do
cérebro. E, por consequência, em nosso humor, emoções e comportamento.
“Animais biologicamente modificados para crescerem sem bactérias têm
alterações no desenvolvimento do cérebro, memória e mudanças
comportamentais como maior ansiedade e respostas ao stress, mostrando um
perfil autista. E verificamos que alguns probióticos, ou seja, certos
tipos de bactérias, como o Lactobacillus, têm efeito positivo na mente, diminuindo o stress e a ansiedade”, diz Cryan.
Isso acontece porque as bactérias enviam informações aos neurônios de
várias maneiras: além dos hormônios e neurotransmissores que produzem,
elas também têm influência no nervo vago, que transmite as informações
do intestino ao cérebro. Por isso, garantir uma microbiota saudável
desde o início da vida pode ser fundamental para o bom desenvolvimento
da mente e emoções.
“Algumas das maneiras mais importantes de se adquirir um
microbioma saudável é por meio do parto natural e aleitamento materno,
nos quais a mãe transmite suas bactérias para o bebê. Além disso, o uso
excessivo de antibióticos na infância prejudica o desenvolvimento das
bactérias”, diz o cientista.
O laboratório de Cryan está fazendo os primeiros testes de
probióticos que possam tratar depressão em humanos. Em um ou dois anos,
ele espera ter trabalhos publicados que possam ser a base para o que
chamou de psicobióticos — tipos de probióticos com efeitos benéficos
para o comportamento. Seria uma forma de garantir que o domínio que as
bactérias parecem exercer sobre nós, seja, ao menos, saudável.
“Acredito que nossa dieta, que sabemos que influencia nosso humor,
combinado a psicobióticos que agem diretamente no microbioma, serão a
melhor forma de aperfeiçoar nossa saúde, inteligência e cognição no
futuro”, diz Cryan.
Veja
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