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terça-feira, 26 de agosto de 2014

A cura pelas bactérias

Thinkstock: Estudos recentes mostram que nosso corpo possui cerca de 500
bactérias desconhecidas
O estudo dos micro-organismos em nosso corpo revoluciona o diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças como obesidade, câncer e diabetes

Em nosso corpo, há dez bactérias para cada célula. Juntos, esses 100 trilhões de micro-organismos pesam em torno de 2 quilos — cerca de 500 gramas a mais que nosso cérebro. E é a partir desses minúsculos, mas poderosos, micróbios que uma revolução está acontecendo na medicina. A identificação e estudo do microbioma humano — nome dado a esse conjunto de bactérias — pode, em menos de uma década, transformar o diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças como obesidade, câncer, diabetes ou transtornos mentais. 

“Em pouco tempo, vamos tomar medicamentos compostos de bactérias para tratar a depressão, em vez de Prozac”, afirma o médico e neurocientista John Cryan, que estuda a relação entre o microbioma humano e o cérebro na Universidade College Cork, na Irlanda. “Estamos estudando o funcionamento disso em humanos, mas os resultados são promissores e a ciência está avançando tão rápido nesse campo que, em um ou dois anos, deveremos ter publicações científicas capazes de produzir esse tipo de droga.”

Projeto Microbioma Humano 
O conhecimento sobre as bactérias que nos compõem é recente. Pelo menos desde o início do século XX os cientistas sabem que as bactérias que vivem em nosso corpo ajudam na digestão e na absorção de energia. O que os pesquisadores não sabiam é que o número de micróbios convivendo conosco era tão vasto e que sua atuação vai além da quebra e produção de substâncias em nosso corpo, podendo ser determinante no combate de doenças e até em nosso comportamento.

O ponto de partida para essa descoberta foram dois estudos publicados em 2004 sobre a atuação desses micro-organismos no comportamento e no desenvolvimento de quadros de obesidade. Pesquisadores japoneses mostraram que camundongos biologicamente alterados para crescerem sem nenhuma bactéria exibiam níveis muito elevados de hormônios do stress. Nos Estados Unidos, uma equipe de cientistas mostrou que o mesmo tipo de camundongo tendia a ser mais magro que os animais normais — e ganhava peso se recebesse as bactérias de um camundongo comum. Foi o gatilho para que diversos grupos ao redor do mundo se interessassem pelo assunto, que poderia ser o elemento que faltava para a compreensão de doenças crônicas como diabetes ou Alzheimer.

Três anos depois, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês) começaram o Projeto do Microbioma Humano, com o objetivo de mapear todas as bactérias de nosso organismo. Usando o conhecimento de sequenciamento de DNA do Projeto Genoma, também do NIH, 80 instituições de pesquisa mostraram que somos formados de mais bactérias que células. Essas primeiras informações, publicadas em 2012, serão compiladas e decifradas até 2015, quando termina o programa que já consumiu 153 milhões de dólares (cerca de 350 milhões de reais) do governo americano. Na Europa, um consórcio entre instituições de oito países começou em 2008 o mesmo trabalho.

Em conjunto, os dados desses dois projetos provocaram a explosão do número de estudos sobre o impacto das bactérias na saúde humana. No ano de 2004, o site PubMed, que compila publicações científicas reconhecidas internacionalmente, registrava 166 estudos. Só nos oito primeiros meses de 2014, foram publicadas 2.141 pesquisas sobre o assunto — doze vezes mais que há dez anos.

“Vivemos uma nova compreensão do que são as doenças e a manutenção da saúde”, diz o gastroenterologista Dan Waitzberg, professor da Universidade de São Paulo (USP). “Estudos recentes mostraram que nosso corpo possui cerca de 500 bactérias que jamais tinham sido vistas. Esse é um campo extremamente desconhecido e que está trazendo muitas revelações para a medicina.”

Evolução médica 
De acordo com Waitzberg, o conhecimento que virá da análise e interpretação do microbioma terá impacto profundo em todos os campos da saúde. “Em cerca de cinco anos, máquinas mais potentes de sequenciamento de genes poderão fazer o mapa da composição das bactérias de cada indivíduo. Com ele, será possível melhorar o diagnóstico e a prevenção de doenças, pois a falta ou multiplicação de alguns grupos de micróbios pode indicar a presença ou o potencial desenvolvimento de enfermidades”, diz o médico.

Além disso, o conhecimento do tipo de bactérias presentes em nosso corpo também produzirá novos medicamentos para tratar enfermidades que ainda são um desafio para os cientistas, como diabetes ou câncer. A aposta dos cientistas é em probióticos, isto é, bactérias vivas consumidas na forma de iogurte, leite fermentado e cápsulas, normalmente usados para melhorar a digestão, ou em medicamentos que combinem tipos específicos de bactérias para agir diretamente nas enfermidades. Os cientistas já sabem que pessoas com câncer de cólon têm alterações importantes nas bactérias desse segmento do intestino. Assim, equilibrar esse microbioma por meio de uma drágea poderia ser uma maneira de prevenir a incidência da doença e impedir seu crescimento.

“Nos próximos três anos, haverá muitos probióticos novos no mercado — já há alguns na Anvisa, aguardando a aprovação. Eles serão um apoio para a dieta, que tem grande influência no microbioma e será modulada de forma a melhorar a saúde e prevenir doenças”, afirma Waitzberg.

Outro campo promissor é o que está sendo estudo pelo grupo do epidemiologista brasileiro Luis Caetano Antunes, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Em uma pesquisa publicada no fim de julho na Revista da Sociedade Americana de Microbiologia, Antunes demonstrou como uma substância produzida por um dos grupos de bactérias presentes no intestino é capaz de barrar a infecção causada por Salmonella.

“Essas moléculas produzidas pelos micróbios do nosso corpo que impedem infecções traz grande potencial terapêutico. Da mesma forma que elas impedem a Salmonella, poderiam  combater qualquer outro tipo de infecção”, diz Antunes. “São trilhões de bactérias, milhares de espécies que podem gerar centenas de novos produtos interessantes para nossa saúde.”

O objetivo do laboratório de Antunes, um dos únicos no Brasil que se dedicam a estudar o microbioma humano, é desenvolver novos tratamentos para a tuberculose. “Se encontrarmos bactérias do trato respiratório que produzam moléculas capazes de combater essa doença, podemos desenvolver um tratamento adicional. Será um apoio para os médicos e uma alternativa quando os antibióticos não fizerem efeito, como é o caso de bactérias multirresistentes.”

Combate à obesidade 
A relação do microbioma humano com a obesidade e o comportamento humano são as duas áreas com pesquisas mais avançadas. Há alguns anos, os cientistas sabem que há uma relação próxima entre a obesidade e alterações na flora intestinal.

A progressão dessas pesquisas, que deverá determinar se é um organismo obeso que produz alteração na microbioma intestinal ou o contrário, poderá transformar a forma de combater a epidemia mundial que atinge quase um terço da população, além de fornecer pistas sobre o funcionamento de doenças relacionadas a ela, como diabetes. Os últimos estudos, no entanto, mostram que as bactérias de nosso intestino podem ter uma atuação muito mais complexa que uma simples relação de causa e efeito. Elas poderiam manipular o comportamento humano para ingerir certos tipos de alimentos.

Um estudo publicado no início de agosto no periódio BioEssays, por pesquisadores da Universidade da California em São Francisco e da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, mostrou que, produzindo toxinas, hormônios e neurotransmissores similares aos humanos, as bactérias podem ser capazes de alterar nosso humor ou influenciar a transmissão de impulsos de fome ao cérebro. Assim, elas poderiam ter uma alimentação boa para elas e ruim para nós.

“Estamos começando a entender a obesidade como um problema que tem a ver com nossas bactérias, não só com a dieta. Acreditamos que elas tenham motivo e meios para mudar nosso comportamento. E esses efeitos podem causar obesidade”, diz o médico Joe Alcock, pesquisador da Universidade do Novo México e um dos autores do estudo. “No entanto, não sabemos ainda se o microbioma seria uma causa importante para a doença e outros transtornos alimentares ou apenas mais um dos fatores envolvidos na obesidade.”

Domínio saudável
Com esse mesmo mecanismo de manipulação, as bactérias do nosso corpo podem exercer um papel fundamental em distúrbios como stress, depressão ou autismo. Estudos liderados pelo neurocientista John Cryan, desde 2009, mostram que a microbiota do intestino tem grande influência no desenvolvimento do cérebro. E, por consequência, em nosso humor, emoções e comportamento.

“Animais biologicamente modificados para crescerem sem bactérias têm alterações no desenvolvimento do cérebro, memória e mudanças comportamentais como maior ansiedade e respostas ao stress, mostrando um perfil autista. E verificamos que alguns probióticos, ou seja, certos tipos de bactérias, como o Lactobacillus, têm efeito positivo na mente, diminuindo o stress e a ansiedade”, diz Cryan.

Isso acontece porque as bactérias enviam informações aos neurônios de várias maneiras: além dos hormônios e neurotransmissores que produzem, elas também têm influência no nervo vago, que transmite as informações do intestino ao cérebro. Por isso, garantir uma microbiota saudável desde o início da vida pode ser fundamental para o bom desenvolvimento da mente e emoções.

“Algumas das maneiras mais importantes de se adquirir um microbioma saudável é por meio do parto natural e aleitamento materno, nos quais a mãe transmite suas bactérias para o bebê. Além disso, o uso excessivo de antibióticos na infância prejudica o desenvolvimento das bactérias”, diz o cientista.

O laboratório de Cryan está fazendo os primeiros testes de probióticos que possam tratar depressão em humanos. Em um ou dois anos, ele espera ter trabalhos publicados que possam ser a base para o que chamou de psicobióticos — tipos de probióticos com efeitos benéficos para o comportamento. Seria uma forma de garantir que o domínio que as bactérias parecem exercer sobre nós, seja, ao menos, saudável. 

“Acredito que nossa dieta, que sabemos que influencia nosso humor, combinado a psicobióticos que agem diretamente no microbioma, serão a melhor forma de aperfeiçoar nossa saúde, inteligência e cognição no futuro”, diz Cryan.

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