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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Humanidade estará sempre exposta a novos surtos, diz infectologista

Na história da humanidade, são muitos os capítulos dedicados às guerras contra micro-organismos patógenos. Desde que o Homo sapiens se fixou no campo e domesticou os animais, bactérias e vírus encontraram um novo hospedeiro que, despreparado imunologicamente, tornou-se presa fácil.

As bactérias já dominavam a Terra há bilhões de anos, sobrevivendo às mais inóspitas condições, enquanto que aquela nova espécie tinha acabado de concluir seu processo de evolução. Era uma luta desigual.

Fósseis pré-históricos não deixam dúvidas de que, quando não morriam em acidentes, os primeiros homens modernos eram vitimados por infecções. As marcas podem ser observadas em ossos e dentes consumidos por micro-organismos. A cosmopolita Roma derrotava impérios, mas não conseguiu enfrentar seres invisíveis. Com um fluxo enorme de estrangeiros e uma população confinada em habitações imundas, a cidade eterna foi um centro mundial de epidemias.

A espada do bravo Marco Aurélio, célebre filósofo e estadista destemido, não conseguiu atingir o micro-organismo que o matou, em 180 d.C. Não se sabe o nome da doença, mas, pela descrição do médico Claudio Galeno, tratava-se de uma infecção que devastou Roma por 15 anos.

Na Idade Média, aumentaram os aglomerados urbanos e, com eles, a suscetibilidade a doenças patógenas. Pessoas amontoadas em péssimas condições de higiene e nenhum saneamento eram um convite a vírus, fungos e bactérias. Nenhuma epidemia foi tão terrível quanto a peste negra, que surgiu em 1347 e tomou conta da Europa em pouco tempo.

Nada menos que um terço da população do continente morreu. Os que sobreviveram tinham de lidar com outra ameaça: a hanseníase, então chamada de lepra.

Não houve Renascimento, Iluminismo e Revolução Industrial que colocasse fim à batalha dos homens contra as pragas. A penicilina, descoberta por acaso pelo microbiologista Alexander Fleming, no início do século 20, mudou, contudo, o placar. A humanidade, enfim, parecia estar no controle. Ninguém mais morreria de infecções ou doenças como tuberculose, sífilis e pneumonia.

A sensação de vitória, porém, era falsa. Logo surgiram vírus letais como o HIV e o H1N1, para novamente desafiar a medicina. Em maio, uma velha conhecida, a E.coli, surpreendeu o mundo. Uma cepa raríssima matou 47 pessoas na Europa e pode não estar restrita ao Velho Continente. Na quinta-feira, a Agência Europeia de Segurança Alimentar (EFSA) divulgou um comunicado afirmando que a origem do surto pode estar em sementes importadas do Egito.

Em entrevista ao Correio, o especialista em superbactérias Guilherme Mendes, da Life Technologies, empresa que sequenciou o genoma da E.coli, com a Universidade de Münster, na Alemanha, afirma que surtos semelhantes podem voltar a surpreender a humanidade.

O que fez essa cepa ser tão letal? É possível que outras cepas da E. Coli também surjam no futuro?
O processo que gerou essa cepa tão agressiva, na verdade, ocorre naturalmente por meio da recombinação de parte do material genético (DNA) de duas ou mais cepas distintas. O que fez dessa cepa tão patogênica e letal foi a combinação genética final que ela adquiriu. Esse processo ocorre naturalmente e é uma das maiores fontes geradoras de variabilidade desses micro-organismos. Por se tratar de um processo frequente e natural, é possível, sim, que surjam outras cepas de E. coli e que voltem a nos surpreender.

De que forma a genética está ajudando a combater os micro-organismos?

A maioria dos micro-organismos não precisa ser combatida, muito pelo contrário, dependemos deles em vários processos e muitas vezes eles são os responsáveis pela nossa defesa. Por exemplo, a nossa microbiota intestinal, popularmente conhecida como “flora intestinal”, impede que muitos micro-organismos causadores de doenças se instalem no nosso organismo. Com relação aos micro-organismos patogênicos, os métodos genéticos estão intimamente ligados à identificação desses micro-organismos, entendimento do seu comportamento, sua virulência e, finalmente, sua origem. Recentemente, grupos de pesquisa, apoiados pela Life Technologies, utilizaram testes genéticos em tempo recorde, apenas três dias, para identificar (sequenciar) e desenvolver testes ainda mais rápidos (PCR em tempo real: Polymerase Chain Reaction, Reação em Cadeia da Polimerase em português) para a detecção das cepas de E. coli responsáveis pelo surto na Europa. Essa medida foi fundamental para a contenção do surto, que poderia tomar proporções globais.

Cada vez mais, as bactérias mostram-se resistentes a antibióticos. Não está na hora de a indústria farmacêutica buscar uma nova substância capaz de combatê-las com eficácia?
A busca por antibióticos e novas drogas movimentam bilhões de dólares por ano. Existem centenas de grupos de pesquisa trabalhando nisso, no entanto o desenvolvimento dessas drogas não é trivial. É difícil pensar em um antibiótico definitivo, mesmo porque existe a evolução desses micro-organismos com o uso dessas drogas. Há algumas décadas, a ampicilina era a solução para quase todos os problemas de infecção, hoje, já observamos muitos casos de micro-organismos resistentes a ela e seus derivados. Nesse sentido, o melhor mecanismo para contenção de surtos como o que ocorreu na Europa é ter um teste rápido, preciso e acessível para identificar novos micro-organismos e tomar as providências cabíveis. O uso do sequenciador Ion Torrent Personal Genome Machine possibilitou a identificação da superbactérica E. coli.

Muitas pessoas têm medo de hospitais hoje em dia por causa de infecções. Esse temor procede?

Nos hospitais, o uso de antibióticos é frequente e, por esse motivo, os micro-organismos que sobrevivem neste ambiente são aqueles adaptados aos antimicrobianos, ou seja, são as cepas resistentes. Os indivíduos sadios que frequentam um hospital têm baixíssimo risco de serem infectados por essas cepas resistentes, pois elas têm baixa capacidade de profileração, são fracas, quando comparadas às cepas que já habitam a flora natural de um indivíduo saudável. Essa “competição pelo domínio da flora” é a seleção natural, onde vence o mais forte. Os pacientes imunocomprometidos e em tratamento com antimicrobianos possuem a flora natural debilitada, pois são sensíveis ao tratamento, o que propicia um ambiente favorável para que as bactérias resistentes ganhem essa competição. Os indivíduos sadios não devem temer o ambiente hospitalar.

Dos micro-organismos que hoje ameaçam a saúde, quais são os mais preocupantes?
Existem muitos micro-organismos que podem vir a ser uma ameaça, dentre eles podemos citar alguns vírus como influenza (vírus causador da gripe) devido à alta taxa de mutação, rápida proliferação e diversidade de vias de contaminação. Tem a Salmonella enterica e a E.coli, que são organismos relacionados a saneamento básico, e os Enterococcus spp e Staphylococcus spp, que estão muito relacionados à multirresistência a drogas e são causadores de grandes casos de infecção hospitalar.

Quando houve o surto do vírus H1N1, o Brasil conseguiu responder rapidamente. O senhor acha que o país está bem preparado para enfrentar epidemias?
Uma epidemia nada mais é do que uma guerra e para enfrentá-la precisamos de um bom exército, boas armas e fundamentalmente uma boa inteligência para articular estratégias. Muito já se avançou, mas o Brasil ainda precisa investir nessas ferramentas que capacitarão nossos profissionais a enfrentar, de forma rápida e efetiva, essas ameaças. Os investimentos devem contemplar não apenas as ferramentas mas também a formação dos profissionais da saúde, pesquisadores e administradores para que se tenha uma equipe integrada, preparada e capacitada para grandes desafios. Certamente, com esses investimentos, o Brasil estará muito bem preparado para qualquer batalha.

A história da humanidade é marcada por períodos de epidemias devastadoras. O senhor acredita que um dia será possível se livrar dessas?

A velocidade e facilidade de deslocamento no mundo hoje permite, por exemplo, que uma pessoa pegue um avião no Brasil e em menos de 24 horas esteja do outro lado do mundo, ou ainda que em menos de quarenta e oito horas estejamos consumindo no Brasil uma hortaliça produzida por um agricultor no interior da Europa. Isso sem dúvida é fantástico, porém, gera um alerta, pois, com essa rapidez, aumenta também a velocidade de propagação de doenças. Os micro-organismos estão evoluindo conosco há milhares de anos, desenvolvendo mecanismos de sobrevivência e nós, mecanismos de defesa, no entanto algumas vezes essa relação se desequilibra. Acredito que epidemias devastadoras possam diminuir e até mesmo serem controladas mais rapidamente devido a essa velocidade de comunicação.

Qual o papel da prevenção nas epidemias? O Brasil consegue
fazer bem esse trabalho?

A prevenção é sempre a melhor estratégia e deve ser prioridade em qualquer gestão de saúde pública. O governo brasileiro tem desenvolvido um bom trabalho na prevenção de algumas doenças, com importantes campanhas de vacinação e ações de divulgação, mas muito ainda precisa ser feito e não apenas por parte do governo, mas principalmente por parte da população. Por exemplo, basta vermos que por mais propagandas e ações que sejam tomadas, a dengue está aí todos os anos matando e adoecendo a população. O Brasil está num ótimo caminho mas precisa investir muito ainda em saúde, tecnologia e principalmente, educação.

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