Saiba como médicos de diferentes credos (e até ateus) contribuem para legitimar uma cura milagrosa
Irmã Célia Cadorin, 84 anos, é uma espécie de detetive da fé que conta com o apoio do ceticismo da ciência para encontrar milagres. Seu trabalho, minucioso e de mais de cinco décadas, é reunir documentos, relatos e pacientes que comprovam curas milagrosas creditadas à santidade de brasileiros. As pesquisas da religiosa já sustentaram, por exemplo, a decisão do Vaticano em canonizar Frei Galvão e Madre Paulina.
Atualmente, ela defende a causa de 28 candidatos do País ao posto de santo. Neste processo de legitimar pacientes agraciados pela bênção de homens e mulheres que viveram no Brasil, a irmã consulta uma estrutura de médicos dos mais diferentes credos: “evangélicos, judeus, espíritas, umbandistas e até ateus”, enumera.
Os profissionais também são das mais diferentes especialidades, já que entre os abençoados estão vítimas de problemas infectocontagiosos, de malformação congênita, gravidez condenada, panes no coração, problemas nos ossos e paralisia – só para citar algumas doenças descritas nos prontuários amontoados em pilhas de papeis que se acumulam na escrivaninha da Irmã.
A religiosa sempre aciona esta variada rede da medicina de fé (ou sem fé alguma) para avaliar se um caso que evoluiu para cura após novena ou oração, de fato, não tem nenhuma explicação científica. Irmã Célia diz que só abraça a causa com afinco caso estes médicos digam "amém" para o milagre e afirmem categoricamente que não há explicação científica para a cura.
O padre César Augusto dos Santos – que atualmente faz um trabalho investigativo em prol da canonização de Padre José de Anchieta – explica a importância do aval prévio dos profissionais de saúde.
“O médico tem a visão global, a experiência e conhece a evolução da doença. Tive um caso que todos asseguravam ser milagre, menos o médico, e ele me explicou os motivos”, comenta.
“De fato, em menos de um ano, o ‘miraculado’ estava morto”, afirma ele, que já viveu situações inusitadas em prol de seu trabalho investigativo. Um vez, lembra o padre Santos, ele marcou consulta com um ginecologista para confirmar se uma das pacientes deste médico podia ou não ser inserida entre as graças creditadas ao Padre Anchieta.
“Imagine o rosto das pessoas na sala de espera. Eram mães com filhas, casais, e eu era o único homem sem estar acompanhando alguém”, diverte-se.
“Doutor Não”
Para considerar milagrosa uma cura o catolicismo exige quatro condições: o doente precisa sarar de forma rápida e instantânea, a solução do problema tem de ser perfeita (sem uma única sequela, por menor que seja), o resultado precisa durar a vida toda e, por fim, a medicina precisa ter entregado os pontos – de alguma forma, ter atestado que não havia mais nada a ser feito com a pessoa.
Para considerar milagrosa uma cura o catolicismo exige quatro condições: o doente precisa sarar de forma rápida e instantânea, a solução do problema tem de ser perfeita (sem uma única sequela, por menor que seja), o resultado precisa durar a vida toda e, por fim, a medicina precisa ter entregado os pontos – de alguma forma, ter atestado que não havia mais nada a ser feito com a pessoa.
Em paralelo, é preciso ser comprovado – por meio de relato de testemunhas – que todo este processo medicinal aconteceu de forma simultânea à reza ou às oferendas a algum candidato a santo ou santa. Por estas condições, o câncer não faz parte das listas de milagres reconhecidos oficialmente, explica Irmã Célia.
“Não que a fé não possa contribuir para a cura de um câncer”, explica ela. “Mas não conseguimos documentar isso a longo prazo. Sabemos que o câncer pode voltar depois de um certo tempo, às vezes anos e anos. Isso comprometeria a afirmação de que a cura foi duradoura.”
Atestar se a evolução clínica contrariou mesmo as evidências científicas é um procedimento demorado e às vezes frustrante para quem está na linha de frente da causa. Irmã Célia, por exemplo, cursou dois anos de medicina e, no início, ela própria faz a peneira – no processo feito para Frei Galvão, canonizado em 2008, a religiosa avaliou 23.929 graças creditada a ele.
“Quando tenho alguma dúvida consulto um amigo meu, médico e judeu. Eu o chamo de 'Doutor Não’”, conta ela, que não revela a identidade do colega por nada neste mundo.
“Ele diz ‘não’ para quase todas as minhas suspeitas de cura milagrosa, sempre de forma muito embasada. Quando ele diz ‘sim, isso parece um caso sem explicação médica’, fico com a certeza de que é um passo quase certo em direção ao milagre.”
Tribunal médico
Ainda que detetives da fé como Irmã Célia e Padre César façam direitinho as suas lições de casa – e tenham o respaldo dos mais céticos médicos para fundamentar as curas atribuídas aos seus candidatos a santo – só o trabalho deles não legitima o milagre.
A própria Igreja Católica conta com uma equipe de sete médicos que avalia todos os documentos e casos clínicos encaminhados ao Vaticano no processo de canonização. Esta equipe recorre ainda à ajuda de várias faculdades de medicina, algumas das mais renomadas como a Escola de Medicina de Harvard (EUA), para que ajudem no julgamento de uma cura milagrosa. Além disso tudo, médicos de diversas partes do planeta ajudam na fundamentação das decisões.
O cardiologista brasileiro Roque Savioli, do Instituto do Coração de São Paulo (Incor), é um dos que, de forma voluntária, contribui com estes pareceres. Ele já recebeu, em média, 100 boletins informativos de doentes que, supõe-se, foram agraciados por Nossa Senhora de Lourdes (ela tem 66 milagres reconhecidos).
“Por email ou em reuniões presenciais, exponho a minha opinião sobre o caso, digo quais informações médicas estão faltando e quais pontos não estão esclarecidos”, diz ele. Savioli faz palestras sobre a importância da fé na medicina, mas diz que ainda não analisou nenhum registro que pareceu ser cura uma milagrosa.
Savioli e outros 10 mil médicos fazem parte da Associação Médica Internacional de Lourdes (Amil), sediada na cidade francesa de mesmo nome, local que os católicos acreditam ter sido palco da aparição de Nossa Senhora, em 1858. O atual diretor desta Associação, o cirurgião Patrick Theillier, disse em entrevista à revista eletrônica Catolicismo – mantida pela Igreja – que “o número de curas declaradas pela medicina é 100 vezes maior do que as reconhecidas pelas autoridades eclesiásticas. Apenas uma cura sobre 100 declarações, em média, é reconhecida de modo oficial”.
Para ser oficial, é preciso que os sete médicos do Vaticano deem seus veredictos sobre o caso depois de todo este dossiê montado e minuciosamente revisado. Passado por este tribunal médico, o papa em exercício promulga ou não a autorização para a canonização do santo com base em seus milagres reconhecidos.
Unanimidade
O caso da brasiliense Sandra Grossi de Almeida e de seu filho Enzo foi apreciado por esta burocracia da fé e aprovado como milagre por unanimidade, por todo o tribunal do Vaticano. Após sofrer dois abortos espontâneos consecutivos devido a um problema no útero que impedia a gravidez, ela voltou a engravidar em 1999.
O caso da brasiliense Sandra Grossi de Almeida e de seu filho Enzo foi apreciado por esta burocracia da fé e aprovado como milagre por unanimidade, por todo o tribunal do Vaticano. Após sofrer dois abortos espontâneos consecutivos devido a um problema no útero que impedia a gravidez, ela voltou a engravidar em 1999.
“Sabia que o risco era grande, a minha médica falou de todos os problemas acarretados, mas ela abriu espaço para a minha fé”, lembra.
“Em dias em que precisava fazer jejum absoluto por causa dos exames, ela permitia que eu tomasse um golinho de água para engolir as pílulas de Frei Galvão (consideradas milagrosas pelos fiéis).”
Após seis meses de gestação de alto risco, Enzo nasceu prematuro, teve complicações no pulmão e sobreviveu após chegar perto da morte. Irmã Célia catalogou tudo e Sandra e Enzo são considerados o milagre duplo do último homem do Brasil canonizado.
Sandra não consegue responder por que acredita ter sido beneficiada pela fé, sendo que outras mulheres, talvez religiosas e praticantes como ela, não conseguiram mesmo desfecho.
“Eu me fiz essa pergunta várias vezes”, diz. “Acho que nunca neguei nem a medicina e nem a fé, por isso fui escolhida. Cumpri rigorosamente todos os cuidados médicos que me foram colocados. E nunca briguei com Deus, mesmo sabendo que poderia, mais uma vez, enfrentar toda a amargura que é perder um filho na gestação.”
Fonte IG
Foto: Amana Salles/Fotoarena Ampliar Detetive de milagres: Irmã Célia conta com a opinião até de médicos ateus para defender uma cura milagrosa |
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