Em blog, profissionais do setor mostram que regular essa relação não é simples, pois ,na prática, não receber dinheiro diretamente da indústrias tem pouco alcance, trazendo dificuldades financeiras
O assunto vem sendo discutido cada vez mais no mundo inteiro. São incontáveis os exemplos de problemas decorrentes destas relações e da forma como têm sido expostos, com evidente desgaste à imagem da corporação médica e impacto negativo para os pacientes e a sociedade de um modo geral. Por outro lado, é inquestionável a importância social e econômica da indústria farmacêutica e a inevitável existência de pontos de convergência entre ela e a medicina, tanto históricos quanto estratégicos. Nosso foco não será apontar exemplos de relacionamentos perversos entre médicos e indústria, mas estimular a reflexão sobre como podemos avançar nesta discussão a partir de 5 diferentes perspectivas.
1. Descriminalização do debate
Para lugar nenhum iremos quando se busca somente e obsessivamente os “médicos corruptos”. Os Conselhos de um modo geral têm cada vez mais sinalizado que estão alertas e dispostos a punir, enquanto a mídia expõe sucessivos casos de graves violações de conduta. Isto tudo apenas aumenta a cortina de fumaça sobre o tema.
Outra cultura é necessária, onde conheçamos e reconheçamos efetivamente como se dão as relações entre médicos e a indústria farmacêutica, seja enquanto pessoas físicas ou através de suas entidades ou empresas. A evidência empírica demonstra que são absolutamente raros os casos onde, ao se encontrarem, médicos e representante da indústria olham um para o outro e dizem: “é eu e você, e dane-se o paciente”. No varejo, estes contatos costumam ocorrer entre profissionais dedicados, e principalmente com médicos bem intencionados acreditando estar fazendo boas coisas, ou, pelo menos, não prejudicando terceiros da maneira perversa como costumam apresentar.
Quem já vivenciou as entidades médicas, fazendo congressos, muito possivelmente também já se deparou com a dúvida: “estão pedindo isto, é?!” (se referindo a patrocinadores). “Não será por uma palestra que comprometeremos o todo, não é?”. Quem não ficaria em dúvida? A cadeia de causalidade que vai do patrocínio à prescrição é longa, complexa, difícil de delinear e compreender e, se jogada no terreno da moralidade, geradora de barreiras cognitivas que tornam os profissionais impermeáveis ao debate.
Se os Conselhos precisam estar de prontidão para agir em face de condutas que mereçam punição, eles próprios devem propiciar e estimular fóruns de discussão e avaliação de caráter não punitivo. Espaços capazes de AJUDAR os médicos a compreender e administrar eticamente estas relações. A mediar conflitos de interesse que, per se, não podem ser caracterizados como antiéticos ou imorais, sob pena de criminalização do cotidiano das relações humanas.
2. Foco no problema
Outro desafio é procurar separar estas questões de outras que, muito comumente, vêm em seu bojo: pautas ideológicas ou políticas, por exemplo. Tem sido freqüente a instrumentalização desse debate por ativismos de todo tipo (anti-capitalismo, anti-Medicina, anti-medicações, anti-psiquiatria, e suas contrapartes), produzindo um cenário falsamente moralizado, artificialmente polarizado e, conseqüentemente confuso, que inviabiliza a construção de um espaço de “ética possível”, como se houvesse uma condição ideal a priori da qual não se pode abrir mão.
A ética das relações humanas é uma construção histórica e social, portanto é possível sua existência em qualquer tempo, lugar ou sistema econômico.
Personalidades como Marcia Angell, mundialmente conhecida por importantes contribuições a esse debate, há muito perderam o rumo e passaram do ponto. Com sua opção militante estão mais atrapalhando do que ajudando.
3. Menos críticas e mais hipóteses, em busca por soluções.
Qual o valor e a eficácia das declarações de conflitos? Quais as interfaces eticamente admissíveis? Quais os limites de cada interface e da relação delas com o todo? Como garantir Diretrizes de maior qualidade e credibilidade? E na educação médica (básica ou continuada) e nos congressos, simpósios satélites, e áreas de exposição, o que pode e o que não pode? Como verdadeiramente garantir que essas orientações sejam efetivas? Precisamos de novos modelos de financiamento para os eventos? Fundo único para os eventos anuais das sociedades oficiais e que emitem pontuação para a recertificação do título de especialista? Como pontua aquele profissional que já não aceita viagens e desejaria atualização profissional mais independente da indústria? O principal conflito de interesse a ser trabalhado entre os médicos é realmente o financeiro, ou o que envolve facilidades para reconhecimento e status?
4. Mais ciência e menos “achismo”: testar, avaliar, rediscutir, modificar.
Possuímos experiência com evento grande, em resort de luxo, com mais de uma dezena de palestrantes internacionais, que foi destaque no jornal “Folha de São Paulo” enquanto evento livre de indústria farmacêutica. Percebemos que, na prática, não receber dinheiro diretamente da indústria, sem regular os conflitos dos educadores convidados, tem pouco alcance, com imenso aumento das dificuldades em viabilizar financeiramente a iniciativa. Portanto, a solução não é tão simples.
Em outro projeto bastante conhecido aqui no Rio Grande do Sul, agora de educação médica à distância, anunciávamos sua independência da indústria, mas o fato é que também fomos incapazes de garantir a inexistência de vínculos por parte dos educadores envolvidos e alguns viéses. O problema é complexo. É obvio apenas o fato que precisamos conhecer experiências, avaliar resultados e buscar alternativas, multiplicando as mais efetivas e discutindo as dificuldades, sem a cortina de fumaça hoje existente.
5. Mudança de cultura em todos os níveis
A regulação tem que começar por quem tem mais poder e transbordar para o dia-a-dia do médico mais comum. Quase todas as iniciativas até hoje pensadas em nosso meio insinuaram regular apenas o profissional da “ponta”, deixando de fora quem toma decisões maiores e, conseqüentemente, as associações médicas.
Sugere-se com essas medidas que, entre outras coisas, quem ocupa cargos de lideranças teria automaticamente maior capacidade de gerenciar conflitos de interesse, o que não é necessariamente verdade, pelo contrário. Supervaloriza-se o efeito da canetinha recebida “pessoalmente” do laboratório, em detrimento dos grandes financiamentos “institucionais”.
Em suma, precisamos dar a esse debate a dimensão que ele merece e aportar a ele aquilo que a medicina tem de melhor: sua ciência e sua ética. Esse é o desafio.
*Guilherme Brauner Barcellos – Médico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde atua na assistência e no Programa de Gestão da Qualidade e da Informação em Saúde (QUALIS). Atual presidente da Pan American Society of Hospitalists.
Sami El Jundi – Médico, professor das disciplinas de Ética e Legislação Biomédica da Faculdade de Direito da UFRGS, além de coordenador do curso de especialização em Direito Médico da Escola Superior Verbo Jurídico (RS).
Fonte SaudeWeb
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