Há quem não consiga abdicar do senso de compromisso nem quando o descanso é um direito adquirido |
Período de férias representa, para a maioria das pessoas, um momento de
relaxamento e tranquilidade. Mas há quem não consiga abdicar do senso de
compromisso nem quando o descanso é um direito adquirido. O motivo?
Invariavelmente, a culpa.
Conhecido culturalmente desde que, segundo a Bíblia, Adão e Eva morderam a
maçã proibida e padeceram no paraíso, o sentimento é socialmente associado a
erro, dolo e pecado. Na verdade, tirar férias é comer a maçã desejada.
Por causa das muitas festividades dessa época do ano, como Natal, Ano-Novo e
férias, a sensação de culpa geralmente vêm à tona com maior frequência. De
acordo com a psicóloga Zeila Bedin, isso ocorre porque o acúmulo de eventos
sociais aumenta também as demandas emocionais:
— Conciliar todas as solicitações desse período torna muito complicado ficar
de bem com todo mundo e consigo mesmo. Quando se põe na balança, as culpas
surgem.
Muito difundida pelo catolicismo, a culpa cristã é vista pelo padre Érico
Hammes, professor da Faculdade de Teologia da PUCRS, como a relação entre o ato
e o seu efeito negativo:
—É um sentimento paralisante e não faz bem para ninguém— diz ele,
acrescentando que o sentimento tem a ver com a responsabilidade e liberdade.
Mas assumir uma culpa quando se é responsável por algo, complementa Hammes, é
normal e faz parte da mudança de vida.
Boa parte das culpas sentidas pelas pessoas está associada às expectativas em
relação aos vários papéis a serem cumpridos na sociedade atual. É o caso de pais
ou mães que passam a sentir culpa e frustração por não conseguirem acompanhar
todas as etapas do crescimento de seus filhos. Jogue a primeira pedra quem nunca
se sentiu péssimo por faltar a apresentação de final de ano do filho na
escola.
De acordo com os psicanalistas Paulo Sérgio Rosa Guedes e Julio Cesar Walz,
tanto as expectativas sobre os papéis a serem cumpridos quanto o acompanhar
todas as etapas do desenvolvimento dos filhos são ideais delirantes e
impossíveis de serem cumpridos.
Quando o problema vem do trabalho
Em relação ao trabalho, sentir culpa depende de como se planeja a carreira. A
psicóloga Zeila Bedin explica que, se a rotina profissional contempla um plano
de vida, a ausência na família tem recompensa, pois a pessoa se permite
descansar e ter momentos com os filhos. Já quando a dedicação profissional não
inclui o espaço para a vida pessoal, possivelmente haverá conflito. É o caso do
workaholic, aquele sujeito que não tem vida longe do trabalho e, mesmo em férias
ou nos finais de semana, fica preso aos compromissos profissionais, porque assim
o deseja.
Essa característica, explica Zeila, não é tão comum aos jovens da geração Y.
Segundo ela, é a juventude atual está sabendo viver melhor, pois se permite mais
pensar em qualidade de vida do que seus pais:
— Os jovens vivem mais o presente, sem culpas.
Quando a mudança traz alívio
Mesmo formada em Psicologia, a jovem Quênia Mello optou por trabalhar nas
empresas de sua família quando terminou a faculdade. Há cerca de quatro anos,
ela exercia funções administrativas nos ramos alimentícios e de combustíveis,
mas não era exatamente feliz com essa escolha. A falta de identificação com a
filosofia implantada nos negócios familiares trouxe um incômodo que, por não ser
resolvido, acabou se transformando em culpa.
— Havia muito conflito entre os valores dos meus pais e os meus. Me sentia
mal porque não conseguia fazer as coisas do meu jeito — afirma.
Há um ano, decidida a dar um basta no desconforto pessoal, pediu demissão e
resolveu investir no próprio negócio. Buscou qualificação, estudou o ramo e fez
o planejamento estratégico para abrir uma estética no bairro Niterói, em Canoas.
O mercado da beleza, revela, era uma paixão antiga que Quênia trazia desde a
infância.
Além da sala de atendimento kids, temática e com recreacionista para os
filhos das clientes, o diferencial do negócio que Quênia montou é a atenção que
busca dar aos funcionários. Para ela, tão importante quanto o desempenho no
trabalho, é que eles se sintam bem com o que fazem.
— Quando a gente toma as rédeas da própria vida, dissolve a culpa. É uma
opção consciente e fica mais fácil administrar as nossas expectativas — afirma a
nova empresária.
Quando a responsabilidade é maquiada
No livro O Sentimento de Culpa (2007), os psicanalistas Paulo Sérgio
Rosa Guedes e Julio Cesar Walz apresentam uma visão particular sobre o tema,
fazendo a diferenciação do sentimento com o conceito de culpa. Julio Walz
explica que, enquanto o primeiro estaria relacionado à ilusão de onipotência,
mania de grandeza e uma convicção absoluta de poder, a culpa propriamente dita é
referida a quem cometeu atos ilícitos. Mas é sobre o primeiro ponto — o
sentimento — que a tese dos psicanalistas se debruça. Conviver com ele tornou-se
uma constante na sociedade contemporânea, segundo constataram em seus
consultórios. Daí terem concluído que as perturbações mentais têm como causa,
sempre, o sentimento de culpa/megalomania.
— Diríamos que as pessoas que normalmente não têm uma boa autoimagem
frequentemente sentem-se culpadas para tentar buscar alguma ideia melhor acerca
de si mesmas— defendem os especialistas.
No entendimento dos autores, o sentimento de culpa nunca é consequência de
algo, e sim causa. Esclarecem, ainda, que culpa e responsabilidade, do ponto de
vista emocional, são estados afetivos totalmente opostos e longe de serem
sinônimos.
— As pessoas têm uma dificuldade extraordinária de aceitar a
responsabilidade. Preferem se sentir culpadas — afirma Guedes.
Fonte Zero Hora
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