A questão da entrega do prontuário do paciente falecido para os parentes ou representante legal é um desassossego na vida dos médicos e hospitais.
Por Verônica Cordeiro da Rocha Mesquita
A questão da entrega do prontuário do paciente falecido para os parentes ou representante legal é um desassossego na vida dos médicos e hospitais.
Isso porque o Judiciário e o CFM não se entendem, pois divergem nas decisões e entre ambas estão as pessoas acima mencionadas.
Enfoque legal
A Constituição Federal – CF, no seu art. 5º, inc. II, determina que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Esta é uma das premissas que deve ser observada para o estudo do caso.
E o que diz a lei? Primeiramente que o prontuário é documento único constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e assistência a ele prestada e que tem caráter sigiloso (Resolução 1638/02 – Conselho Federal de Medicina – CFM).
A responsabilidade pela guarda do prontuário é da instituição de saúde ou do médico (art. 87, 2º, Código de Ética Médica – CEM), que devem observar o sigilo, haja vista o direito constitucional do paciente à inviolabilidade da sua intimidade, honra e imagem (art. 5º, X, CF).
O mesmo CEM, art. 88, diz que é vedado ao médico negar ao paciente acesso ao seu prontuário e no art. 89 a vedação versa sobre liberação de cópias do prontuário sob sua guarda, saldo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa e cujos procedimentos estão apresentados nos §§ 1º e 2º.
Isso porque ao médico é vedado revelar fato que tenha conhecimento em virtude da sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento do paciente, por escrito (art. 73, CEM). E essa vedação permanece mesmo que o paciente tenha falecido (parágrafo único), até porque o art. 154, do Código Penal caracteriza como crime esta revelação sem justa causa.
Dever legal, justo motivo, consentimento escrito do paciente
Pelo evento morte, impossível o consentimento escrito do paciente para a entrega da cópia do seu prontuário, a não ser que ele tenha autorizado anteriormente ao óbito.
O dever legal imposto pelo CFM demonstra justamente a não entrega da cópia. Há situações relativas a este dever que são exceções e impõem ao médico, por exemplo, revelar às autoridades sanitárias doença de notificação compulsória, mas esta não é a hipótese em debate.
Justo motivo ou justa causa é a argumentação mais utilizada, pois o parente que quer acesso às cópias alega a sua existência, por exemplo, por exigência da seguradora ou, simplesmente, por ser parente.
O CFM é taxativo ao afirmar que o direito ao sigilo do paciente vivo tem efeitos projetados para além da morte e que o justo motivo existe somente quando houver ordem judicial (processo-consulta CFM 4.384/07).
Recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo – TJ/SP – decidiu que o pedido da viúva para obter cópia do prontuário do marido falecido, com objetivo de entregar à seguradora constitui justo motivo, ou seja, deveria o hospital ter entregado administrativamente, sem a intervenção do Judiciário (Apelação 0049942-39.2011.8.26.0576).
Pedido com base no acima indicado (levantar seguro) e até mesmo avaliar a conduta médica-hospitalar com vistas à ação indenizatória, configura violação à intimidade do paciente ou mesmo do sigilo médico? Penso que não.
A situação é, em suma, a seguinte: se o médico entrega (inclusive diretores clínico e técnico) o prontuário do paciente morto ao seu parente, comete infração ética e poderá ser punido pelo Conselho Regional; se o médico não entrega, o parente terá que ingressar com ação judicial para este fim e, demonstrada a sua legitimidade (art. 12, Código Civil), terá sucesso no seu intento, ou seja, a cópia do prontuário deverá ser entregue.
Nesta hipótese, o médico se livra do processo e condenação ética, mas não se livra do pagamento dos honorários do advogado que terá que contratar para a sua defesa, bem como dos da parte adversa, pois será sucumbente na ação, além das custas e despesas processuais.
Neste sentido (TJ/SP, Apelação: 0016789-91.2010.8.26.0077) a jurisprudência abaixo, na qual figura o hospital no pólo passivo, mas que se aplica integralmente ao raciocínio ora apresentado:
“CAUTELAR DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS – Recusa injustificada na apresentação extrajudicial de prontuário médico da própria apelada – Documento apresentado após a citação – ônus sucumbenciais devidos pelo Hospital que deu causa à demanda – Principio da causalidade – Sentença mantida. Recurso Improvido.”
Isso quando não tem o médico que impetrar habeas corpus para garantir o seu direito de ir e vir, quando insiste em cumprir as normas do CFM e não entregar cópia do prontuário, ainda que determinado pelo juiz ou requisitado pela autoridade policial, pois tal decisão do médico é passível de configurar crime de desobediência.
Ou seja, o médico e a instituição de saúde perdem de qualquer forma. Não seria o caso de repensar esta rigidez do CFM e alagar um pouco a caracterização da justa causa, logicamente com todas as cautelas necessárias para não dar margem à atuação dos mal intencionados?
Importante que não se feche os olhos para esta realidade e soluções sejam buscadas para que a lei seja cumprida sem ônus para quem a cumpre (médico), que é o que acontece, pois a situação não é outra: “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.
Fonte Saudeweb
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