Há alguns meses, conheci uma UTI em hospital privado. Uma magnífica unidade em termos de estrutura física e equipamentos, mas onde um médico com oito anos de formação preliminar, seguidos de mais dois específicos em Medicina Intensiva, contou a seguinte história: “trata-se de uma UTI aberta ao extremo – faça o exercício mental de imaginar um estereótipo disto na tentativa de criar uma dicotomia grosseira entre os conceitos de aberta e fechada, e esta é nossa unidade.
Orientam os intensivistas na largada sobre como se comportar, e, em resumo, devemos interferir o mínimo possível nos casos. E, mesmo nas intercorrências, é aconselhável que discutamos com o médico assistente toda e qualquer ação, por vezes atrasando o que deve ser feito, quando o resultado não contraria até mesmo as poucas condutas universalmente aceitas da nossa especialidade”. O colega então disse que a maioria dos intensivistas que lá atua, ou atuou, não gosta, ou não gostava. E que encara o trabalho ali como um “bico” apenas, sem nenhum entusiasmo. “Como frequentamos sempre mais de uma instituição, o alento ou a esperança de cada um aqui é atuar como intensivista de verdade em alguma outra”, ponderou ele.
O relato serve como fotografia das problemas e desafios da Medicina Intensiva, apesar de especialidade médica surgida nos anos 50 e reconhecida pela Associação Médica Brasileira no início da década de 80.
Como breve parênteses, quero manifestar o quanto acho contraproducentes os conceitos de UTI aberta e fechada nos dias de hoje. Já existem evidências suficientes para reconhecer que a UTI ideal fica em algum lugar no meio do caminho, com trabalho em equipe de verdade, e cuidado centrado no paciente. E sei bem que o reconhecimento de uma especialidade jamais de dará por simples vontade daqueles que a praticam ou a representam, cabendo aos profissionais da linha de frente saber também como facilitar isto, estabelecendo e cultivando vínculos, confiança e contrapartidas.
A evolução da conversa foi ainda mais interessante: descreveu que a partir do início da preparação para Acreditação Internacional do hospital, o coordenador da unidade chamou todo o grupo de colaboradores médicos para uma reunião e pediu engajamento em uma séria de atividades e tarefas voltadas à “qualidade e segurança”. E que determinaram aumento na carga de trabalho, predominantemente às custas de elaboração de documentos – políticas, planos e POP’s (procedimentos operacionais padrões), desenvolvimento de protocolos (sem garantia de voz e voto na maioria das escolhas do que neles deveria constar) e preenchimento de listas de verificação.
Esta situação é interessante para discussão de dois aspectos:
1. Uma nevasca de novas iniciativas pode colocar em risco a segurança do paciente, ao invés de ajudá-la. Este assunto foi recentemente abordado por Robert Wachter em artigo traduzido para o Saúde Web. No caso em questão, se antes o corpo funcional não gostava muito do trabalho lá, ele tolerava. A partir das novas atribuições, o resultado foi: muitos profissionais pediram para sair ou estão pensando em largar.
O turnover está maior do que nunca e é crescente. E não apenas dos médicos, mas também de enfermeiros e técnicos de enfermagem. E isto tudo, em tese, pode trazer uma série de riscos à qualidade e à segurança no cuidado. Como fica treinamento para atendimento de paradas cardíacas em uma unidade assim?
2. A utilização de intensivistas e hospitalistas de forma inadequada pode comprometer seus desempenhos, bem como o fortalecimento necessário das especialidades ou áreas de atuação médica em questão.
Um intensivista moderno precisa estar preparado para lidar com estas novas demandas da prática médica, algumas efetivamente burocráticas, mas só terá disposição para aprender as bases teóricas do que deve dar amparo a políticas, procedimentos e protocolos, bem como ímpeto e disposição de fazer a roda girar, se tiver satisfação e, da mesma forma, contrapartidas.
A Medicina Intensiva tem se preocupado bastante com tudo isto nos últimos anos. Anteontem, estive em iniciativa da Sociedade de Terapia Intensiva do Estado do Rio de Janeiro intitulada Simpósio Pensar a UTI, onde já no texto de apresentação aceitam que a especialidade vem enfrentado dificuldades, que são históricas, mas que o momento é crítico, ao menos localmente.
Os organizadores estão de parabéns – foi um evento para não ser esquecido, moldado sob perspectiva rara de olhar o mundo, pensar a UTI; olhar a UTI e pensar o mundo. Discutiram temas como insatisfação e burnout. Houve quem lamentou terem perdido a luta de promover intensivistas “raça pura”, pelo que entendi um colega historicamente envolvido em comissão de formação, triste com a realidade de um mercado que pouco valoriza o “pedigree”, apesar de já terem certificado milhares.
Questionou-se modelo assistencial com rotineiros e plantonistas absolutamente distintos, com a sugestão de um mix disto entre um grupo único e coeso de profissionais. Aceitando que o rotineiro de uma instituição costuma ser plantonista de outra, e reforçando as tradicionais limitações do plantonismo, foi feita a defesa de um corpo funcional médico composto por um menor número total de profissionais, mas exclusivos de um hospital. Falaram também em quebra de um modelo onde um grupo pensa e outro trabalha. Faltou apenas discutir modelos de remuneração capazes de viabilizar tudo isto.
Como estratégia de combate ao burnout, colega defendeu que intensivistas não deveriam fazer sempre a mesma coisa, cantarolando em seguida Cotidiano, de Chico Buarque:
“Todo dia ela faz tudo sempre igual,
Me sacode as seis horas da manhã.
Me sorri um sorriso pontual,
E me beija com a boca de hortelã
…”
Do ponto de vista prático, foi feita a defesa da importância tanto de períodos em atividades não estritamente assistenciais (acredite, pode ser legal!), como de atuação em Add-on services, por natureza complementares, tais como Times de Resposta Rápida. Concordo integralmente, apenas destaco que para clínicos estão querendo oferecer apenas o complementar, fazendo de uma boa ideia um problema (como leitura complementar explore Add-On Services neste outro artigo).
Algumas lideranças entre intensivistas têm defendido o mesmo por outro prisma: entendem que os colegas precisam assimilar a necessidade e a importância de avançarem nos hospitais além dos limites geográficos das UTI’s propriamente ditas, ajudando a pensar e trabalhar os processos e as soluções dentro de uma visão mais ampla, considerando duas outras potenciais vantagens: beneficiar pacientes criticamente enfermos que se encontrem fora das UTI´s, e representar a Medicina Intensiva nas discussões maiores dos hospitais, já que decisões para unidades como Emergências, por exemplo, podem trazer consequências às UTI’s e às pessoas que nelas trabalham.
Se em tese também concordo, perceba o quão negativo pode ser uma expansão de forma errada, compondo Times de Resposta Rápida com intensivistas que Atul Gawande classificaria como cowboys, em essência profissionais com pouca ou nenhuma capacidade de comunicação e de estabelecer relacionamentos saudáveis com outros médicos. Nunca é demais lembrar que nosso mundo é multivariado, no sentido de que vários fatores influenciam simultaneamente nos resultados, e que cada um destes fatores influencia diferente dependendo das interações com os outros. Digo isto apenas para reforçar a complexidade deste debate.
E há algum tempo observo com preocupação o “movimento de médicos hospitalistas no Brasil” . Quando iniciamos a promoção do modelo aqui, e isto foi há quase uma década, o objetivo era tentar tirar o melhor da experiência norte-americana, mesmo que a partir de adaptações, facilitando um bom cenário de trabalho (leia-se equilíbrio entre satisfação e remuneração) para médicos generalistas, clínicos de adultos ou pediatras. Mas era sabido que o bom e o ruim iria se alastrar, e que predominaria o que as leis de mercado e a vontade dos players mais poderosos direcionassem. E que a boa vontade de idealistas isoladamente seria incapaz de prevalecer como determinante maior do resultado. Mas sempre entendi que um grupo organizado (razão pela qual em 2007 fundei uma associação médica) poderia representar uma força interessante, capaz de, ao menos, redimensionar o vetor final. Infelizmente, do seio de nosso movimento surgiu aqueles que, envolvidos na tentativa de vender o “produto”, têm promovido a ideia de um plantão clínico solucionado por boa gestão apenas. E vendem a si próprios como a cereja do bolo, e não os hospitalistas propriamente ditos, bem como não demonstram nenhuma preocupação em fazer da atividade uma carreira médica real e sustentável.
Em meio a tudo isto, o que teríamos a aprender com o bom e o ruim da Medicina Intensiva?
Fonte SaudeWeb
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