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segunda-feira, 8 de julho de 2013

Médicos 'do interior' contam como é trabalhar onde falta tudo, até esparadrapo

Arquivo pessoal
O médico Thiago Cavalcante Ribeiro (à direita) durante seu
 período em posto de saúde no interior da Bahia: um braço
 quebrado tinha que ser levado ao hospital da
capital mais próxima
Profissionais de Macapá (AM) e do interior da Bahia relatam dificuldades de conviver com pouca estrutura dos hospitais e casos terríveis de falta de assistência
 
“Eu já peguei coisas aqui que eu nunca imaginei ver na minha vida”, diz Maria do Horto Teixeira, médica ginecologista obstetra de 64 anos e atualmente trabalhando num hospital de Macapá (AP). Maria é uma das poucas médicas experientes que após anos atendendo num consultório, no caso dela em Porto Alegre (RS), decidiu ir para o Norte do País.

Thiago Cavalcante, 29 anos, formado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2011, também foi trabalhar no interior, no caso dele logo após se formar. Ele se inscreveu no Programa Saúde da Família do governo federal e foi enviado para o município baiano de Paripiranga, de 26 mil habitantes e a 100 quilômetros de Aracaju, no Sergipe. Trabalhava no posto médico três dias por semana, o que permitia tempo para estudar para a prova de residência. O salário líquido era de R$ 8.300,00, mais ou menos o mesmo de Maria, em Macapá.
 
A decisão de Maria de se mudar foi tomada após um concurso que convocou médicos do país inteiro para concorrerem a uma vaga no hospital da capital do Amapá, em 1997. Ela se inscreveu, passou e resolveu mudar de ares. Porém, em poucos dias notou que a realidade era muito diferente do que estava acostumada. Lá, ela sentiu na pele que um plantão pode ter complicações que vão além da gravidade do caso de cada paciente ou da falta de médicos. E que o tradicional corre-corre da sala de emergência pode ganhar como adicional a falta de equipamentos por causa do desvio de recursos ou ter que atender mais pacientes que o esperado por ser o único hospital num raio de muitos quilômetros.

“No ano passado teve concurso aqui no Estado e passou uma médica de Belém (PA) para ganhar R$ 20 mil por 40 horas. Quando ela chegou aqui e viu o hospital onde falta quase tudo ela desistiu e voltou rapidinho”, disse.

Thiago também conta que o posto em que trabalhava tinha estrutura para fazer apenas o básico. Uma intervenção mais complicada ou até mesmo um caso de braço quebrado tinha de ser encaminhado para um hospital em Aracaju. “Tive sorte de ficar num local relativamente perto de uma capital com bons hospitais. Alguns amigos da faculdade foram para lugares mais distantes que eu. Os hospitais não tinham estrutura nenhuma e eles ficavam expostos a situações terríveis”, disse.

Maria lembra que uma vez estava sozinha no hospital quando chegou uma grávida jovem amparada por bombeiros. “Ela veio sozinha de barco para Macapá, depois de uma longa viagem. Foram os passageiros que chamaram os bombeiros quando o barco chegou ao porto. A mulher tinha um filho morto na barriga, que devia estar lá há não sei quanto tempo e não resistiu depois de tantas horas sacolejando no barco. É muito triste”, conta.

Outra vez, Maria atendeu uma paciente com “uma hemorragia brutal”. “Nem sei como ela sobreviveu, perguntei quantos filhos ela tinha e ela só respondeu mostrando os cinco dedos da mão e logo depois desmaiou. Esta estava acompanhada e soube que havia enfrentado uma viagem de 18 horas num barquinho até aqui. Chegou ao hospital em estado de choque”, diz.

A falta de hospitais no interior do Amapá e do Pará - como a ilha de Marajó, por exemplo - obriga pacientes em estado grave a enfrentar horas de barco para serem atendidos em Macapá. “O problema é que, chegando na capital do Estado, eles encontram hospitais sem estrutura, equipamento ou médicos preparados”, disse.

Maria acredita que a falta de dinheiro não seria exatamente o problema se não houvesse tanto desvio de recursos. “Eu acho que daria para fazer um atendimento por avião nestes locais remotos e ter melhores hospitais. Brasília manda dinheiro, mas há muito corrupção”, disse. Na Região Norte, muitos locais são alagados durante alguns meses do ano, o que impossibilita a construção de estradas e torna o barco a única maneira de acesso. O avião nestes casos seria uma solução para o pronto-atendimento.

Outro problema grave, segundo Maria, é a má formação que as universidades da região dão aos médicos. Ela considera que os médicos não saem da universidade preparados para encarar um plantão, ainda mais em situações onde falta tudo, de equipamento a materiais mais simples como agulhas, esparadrapo ou lençóis. “Tem médico que sai da universidade e não sabe nem usar um fórceps. Eu estou falando de coisa básica”.
 
Maria trabalha com médicos “da velha guarda” e outros mais jovens e afirma que é visível a diferença entre as duas gerações. Os mais jovens trabalham “feito condenados” para ganharem dinheiro e irem embora. “Tem um médico que trabalha comigo que além das 40 horas, faz plantão em três hospitais. São cerca de 30 plantões por mês. Um absurdo. Agora eu pergunto como que eu médico deste vai ter o mínimo de atenção e cuidado com o paciente?”.

“Eu vejo também que os jovens de Porto Alegre dificilmente viriam para cá. Eles não querem trocar aquela vida aparentemente pequeno-burguesa para virem para tão longe”, critica.

Ida para o interior, mas com foco na especialização
Ao contrário da maioria dos médicos que, quando vai para o interior, permanece poucos meses, Thiago ficou em Paripiranga por quase dois anos. Após ficar um ano e meio no Programa Saúde da Família, ele permaneceu por mais três meses no mesmo posto de saúde, mas como integrante do Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), até que passou para a residência de otorrinolaringologia em Salvador (BA) e foi morar na capital baiana.

“O salário do Provab era menos 300 reais que o do PSF e eu trabalhava um dia a mais, mas a participação no programa me rendia 10% a mais da minha nota na prova de residência e qualquer meio ponto nesta prova vale ouro, não é?”, disse. Pelo Provab, a carga de trabalho é de 40 horas, sendo oito horas de estudo usadas em um curso de ensino à distância.

A adesão ao programa na turma de Thiago foi relativamente grande, mas não muito duradoura. Dos 77 alunos que se formaram, cerca de 30 passaram na primeira tentativa para a residência. Do restante, cerca de 90% ingressou no Provab. “Muitas cidades do interior não disponibilizam nem internet. Então como é que o médico que participa do Provab vai fazer o curso à distância obrigatório? Na minha cidade eu tinha internet, mas esta não é a realidade para todos”, disse.

Para ele, se o interesse do governo federal no Provab é incentivar a ida de médicos para o interior, então é preciso que os salários de quem trabalha no interior seja maior que o nas capitais. “O salário dos médicos do Provab é o mesmo para quem fica no interior ou na capital. Então não tem um estímulo para o médico ir para o interior. Eu continuei em Paripiranga que fica a 100 quilômetros de uma capital, mas tenho amigos que foram mais para o interior e desistiram antes mesmo de mim por causa dos problemas que enfrentaram”, disse.

Ele disse que com dois plantões de 24 horas por semana em hospitais de Aracaju, por exemplo, onde se paga R$ 1.500 por um plantão de 24 horas, ganha-se mais que o salário líquido do Provab.

Segundo dados do Provab, 968 médicos desistiram do projeto desde que foi criado em 2011. Do total, 46,5% foram convocados para programas de residência e 29,8% foram desligados por descumprirem regras do edital, como carga horária de trabalho e faltas cumulativas.

Médicos estrangeiros
Tanto Thiago quanto Maria não acham que a “importação” de médicos vai solucionar a falta de médicos no interior do País. “Aqui vai ser o primeiro lugar que vão querer colocar médicos estrangeiros. Você acha que um europeu vai querer ficar na selva por muito tempo? Quando começar a sofrer com malária, falta de equipamento e grosseria vai querer ir embora. Talvez os cubanos permaneçam por mais tempo”, disse Maria.

Fonte iG

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