Foto: Diogo Zanatta / Especial Duas salas inteiras da PF em Passo Fundo guardam os volumes com documentos das 300 apurações sobre golpes contra programa de distribuição de medicamentos |
Após subir e descer lomba em busca de remédios de uso contínuo pela área central de Sarandi, município agrícola situado 340 quilômetros ao norte de Porto Alegre, a dona de casa Maria da Conceição Alves, 57 anos, exibe no rosto desânimo e cansaço. Há três anos, ela e o companheiro Albino Chagas, 60 anos, dependem de medicamentos gratuitos do programa Farmácia Popular - ela, para tratar osteoporose, ele para combater diabetes e pressão alta, que já causaram um AVC. Às vezes conseguem, às vezes o produto falta, como no começo do mês. No Centro Municipal de Saúde não havia nenhum dos cinco fármacos solicitados.
O que mais incomoda Maria não é a falta dos medicamentos, que serão encontrados em alguma farmácia de arrabalde:
- A decepção é saber que ocorreu fraude na compra dos remédios. A carência aumentou depois que prenderam gente da prefeitura.
Os medicamentos a que se referem Maria e Albino abundavam nas prateleiras dos postos de saúde de todo o Brasil até dois anos atrás, quando o governo federal resolveu fazer um pente-fino nos gastos com o programa. O resultado é aquela que deve se tornar a mais abrangente investigação já feita pela Polícia Federal no Estado. E, apesar de necessária, a investigação gerou como efeito colateral um torniquete: para evitar mais sangrias aos cofres públicos, foram reforçados os mecanismos de controle. Distribuidoras fecharam e, em alguns casos, há dificuldade para encontrar medicamentos nos postos de saúde.
Os federais estão convencidos de que grande parte das compras de fármacos distribuídos gratuitamente pela União era fraudada, num conluio que envolvia distribuidoras de medicamentos e funcionários públicos. A investigação abrange 2,3 mil licitações e está embasada em auditorias da Controladoria-geral da União (CGU) e tribunais de contas estaduais e da União. O levantamento motivou a prisão de 58 pessoas pela PF em 2011. Os presos foram soltos, mas todos serão indiciados, segundo a PF. Ao todo, pelo menos cem envolvidos devem ser indiciados pelos policiais, com um primeiro lote de indiciamentos agora em setembro. Sarandi, onde vivem Maria e Albino, é um dos locais onde foram constatadas fraude.
A CGU e o Tribunal de Contas do Estado (TCE) dizem que prefeituras gaúchas gastaram R$ 103,3 milhões na compra de medicamentos da Farmácia Básica, entre 2007 e 2009 - dinheiro bancado pelo governo federal. E as empresas investigadas receberam 55,7% desse valor (R$ 57,6 milhões). Essas quantias estão agora sob suspeita e sendo olhadas de lupa.
119 municípios envolvidos no RS
Mediante rastreamento de telefonemas e contas bancárias, os policiais acompanharam encontros entre distribuidores de remédios e servidores de municípios, inclusive com entrega de dinheiro - que a PF garante ser propina. Quando as investigações começaram, eram oito as cidades gaúchas investigadas por fraude no programa. Agora, a PF calcula que a falcatrua atingiu quase 300 municípios em sete Estados, sendo 119 no RS. Isso significa que 20% dos municípios gaúchos podem ter registrado fraudes na compra de remédios.
O primeiro lote de indiciamentos será remetido à Justiça este mês. Duas salas inteiras da PF em Passo Fundo são usadas para guardar documentos das 300 investigações. Os federais querem evitar um inquérito-monstro e infindável. Por isso, farão um por município - o fórum de cada cidade envolvida vai apreciar cada caso, em separado.
Os policiais afirmam que distribuidoras combinavam quem deveria ganhar a licitação e faziam uma proposta fechada para integrantes das prefeituras. As investigações apontam que esses servidores públicos recebiam propina de até 20% do valor da compra, para deixar a licitação ocorrer sem empecilhos. Os donos dos medicamentos faziam rodízio de quem deveria ganhar, se alternando em vários municípios, com a mesma forma de agir.
O delegado que chefia as investigações, Américo Boff, mantém discrição e prefere não comentar o caso. Entre seus colegas há convicção de que serão incriminados secretários de saúde, funcionários e até prefeitos, por integrarem três diferentes grupos que fraudavam licitações, desviavam verbas públicas destinadas à compra de remédios e, em alguns casos, restringiam a distribuição desses produtos.
A cidade que perdeu o hospital
Das 289 cidades investigadas pelo escândalo de fraudes no setor de medicamentos, a mais atingida é Barão de Cotegipe, localidade de matriz agrícola, com 6,5 mil habitantes, situada ao lado de Erechim, norte do Estado. É que três das distribuidoras de medicamento mais visadas nas auditorias do governo federal estão situadas ali. Aliás, o município depende desse tipo de empresa: a distribuição de remédios responde por cerca de 30% da arrecadação de R$ 12 milhões anuais da prefeitura.
As três empresas foram proibidas de participar de licitações governamentais e, com isso, fecharam as portas, causando desemprego. O prédio de uma delas virou metalúrgica. Falar no assunto, em Barão, é tabu. Zero Hora perguntou a 10 pessoas sobre o escândalo, nenhuma delas quis comentar. A mágoa com a menção do fato é grande. Sequer a Associação Comercial se pronunciou.
Mas os impactos da Operação Saúde sobre a cidade são inegáveis. O mais sentido foi o fechamento do Hospital São Vicente de Paulo, o único do município. É que ele tinha sido adquirido pelo proprietário de uma das distribuidoras de medicamentos, indiciado e preso na Operação Saúde da PF.
O empresário chegou a investir um ano em reformas no hospital, quando teve a prisão decretada. Mesmo solto, desistiu do empreendimento, até porque está proibido de negociar com o governo - fonte do sustento da maioria dos estabelecimentos de saúde.
A reforma ficou inacabada e a cidade perdeu os 44 leitos de internação, além do ambulatório que funcionava no local. O prédio foi locado por um grupo de investidores de Caxias do Sul, que transformaram o antigo hospital numa casa de atendimento de idosos.
O prefeito de Barão de Cotegipe, Fernando Balbinotti, minimiza as perdas. Ele admite que a perda do hospital é impactante, mas parte da demanda foi suprida com a construção de um moderno posto de saúde. Internações acabam indo para Erechim, situada a 12 quilômetros. Já a arrecadação de ICMS diminuiu, mas ele calcula que a perda é de apenas 6%, já que distribuidoras não envolvidas na investigação continuam abertas.
Como o esquema foi descoberto
- A Controladoria-geral da União (CGU) fez auditorias e descobriu que as mesmas distribuidoras se alternavam nas licitações em centenas de municípios. Em alguns casos, os medicamentos eram superfaturados. Em outros, não eram entregues. Em um terceiro caso, estavam por vencer e mesmo assim eram vendidos. Auditores desconfiaram de combinação e acionaram a polícia.
- A PF constatou que parte das distribuidoras pertencia a uma mesma família ou a amigos muito próximos. Com autorização judicial, rastreou contas bancárias, quebrou seus sigilos telefônicos e descobriu que se falavam sempre antes de uma nova licitação. Os policiais interceptaram diálogos (sob segredo de Justiça) que comprovariam a combinação das concorrências.
- Em 2011, a PF realizou a Operação Saúde e prendeu 58 pessoas, entre funcionários de distribuidoras, proprietários dessas empresas e servidores públicos de prefeituras que mantinham negócios com elas. Antes das prisões, foram feitas filmagens de encontros entre algumas dessas pessoas, assim como monitoramento de repasses bancários. Com base em computadores apreendidos na operação em 28 municípios, os federais rastrearam contratos feitos em mais de 300 cidades. Os suspeitos de superfaturamento e fraude em licitações serão agora indiciados com vistas a processo judicial criminal.
Contrapontos
- O que diz a prefeitura de Porto Velho
A prefeitura distribuiu nota oficial sobre o assunto, na época em que a Operação Saúde foi realizada. Informou que foi criada comissão especial para analisar as compras de medicamentos. Foi sustentado ainda que não procede a informação de preço superfaturado, já que os valores gastos pela prefeitura de Porto Velho estão dentro dos menores preços encontrados no mercado nacional, na rede varejista local e dos preços estabelecidos pelo Ministério da Saúde.
Zero Hora não localizou a funcionária responsabilizada.
- O que diz a prefeitura de Mariano Moro
Zero Hora esteve em Mariano Moro e localizou o funcionário de carreira do município responsabilizado pela PF. Após cumprir prisão temporária de quatro dias em Passo Fundo, ele continuou trabalhando na prefeitura de Mariano Moro. Ele nega as irregularidades. Afirma que nunca faltou medicamento na cidade e que o estoque era conferido pessoalmente por ele. Admite que conversava pessoalmente com representantes dos laboratórios, mas nega ter recebido dinheiro deles.
- Ofereci quebra de sigilo bancário, não encontraram nada - argumenta.
- O que diz a prefeitura de Sarandi
A assessoria de imprensa declara que o pregoeiro supostamente envolvido em irregularidades foi exonerado, ainda na administração anterior. Sobre a eventual falta de remédios, o secretário da Saúde de Sarandi, Marcelo Duccini, diz estranhar que alguém se queixe a respeito.
- Temos recebido todos os que constam na lista da Farmácia Básica. O que pode ter ocorrido é que algum medicamento específico, de acesso mais difícil, não tenha sido encontrado.
ZH tentou contato pessoal com o pregoeiro. Ele trocou de residência e não informou o novo endereço. Por intermédio de um conhecido da prefeitura, foi deixado recado, mas ele não retornou ao pedido de contato.
- O que diz a prefeitura de Santa Rita do Pardo (MS)
A assessoria de imprensa confirma que o Ministério Público Estadual tem investigação, ainda não concluída, sobre a compra de medicamentos por parte da gestão anterior, cujo grupo não se reelegeu.
ZH tentou contato com a prefeita que autorizou as compras, mas ela não reside mais na cidade.
Zero Hora
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