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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Pobreza e câncer de mãos dadas

Imagem ilustrativa retirada da internet
Mary Namata desabotoou seu vestido numa sala de exames do hospital Mulago, revelando um seio inchado e esticado, cheio de tumores do tamanho de uvas que pareciam prestes a estourar a pele.
 
"Há quanto tempo você tem isso?" perguntou o médico com delicadeza. Namata, 48, mulher elegante com cabelos trançados, trajando um tradicional vestido longo ugandense, desviou o olhar, envergonhada. "Há um ano, mais ou menos", murmurou. Mais tarde, admitiu que na realidade fazia quase quatro anos.
 
Raros em países desenvolvidos, tumores grandes como esse são comuns aqui.
 
Presas na armadilha do estigma, da pobreza e da falta de informação, as mulheres de Uganda com frequência só recebem ajuda médica para o câncer de mama quando já é tarde demais.
 
Mas os médicos disseram que ainda havia esperanças de que o câncer não tivesse se espalhado para outras partes do corpo. O tratamento poderia prolongar a vida de Namata, possivelmente até curá-la, desde que fosse iniciado logo.
 
Mas será que ela poderia ser tratada em tempo? As mulheres na África com frequência enfrentam perigosos atrasos no atendimento médico devido à escassez de recursos, à incompetência ou à corrupção.
 
Namata corria o risco de ter o mesmo destino de muitas mulheres daqui, cujo câncer já está tão adiantado que os médicos não podem sugerir nada além de cirurgia para a remoção de tecido decomposto, de morfina para a dor e de talco antibacteriano para combater o cheiro dos tumores supurados que rompem a pele.
 
Não é de hoje que o câncer recebe pouca atenção em países em desenvolvimento, deixado para trás pela luta contra ameaças mais agudas, como malária e Aids. Mas, com os países africanos tendo feito avanços no combate às doenças infectocontagiosas, mais pessoas estão vivendo por tempo suficiente para apresentar câncer, e a doença está começando a receber atenção.
 
Dois anos atrás, as Nações Unidas lançaram uma campanha global contra doenças não transmissíveis -câncer, diabetes, doenças cardíacas e pulmonares-, observando que elas atingem especialmente os pobres. Pelo menos 7,6 milhões de pessoas por ano morrem de câncer em todo o mundo, e 70% dessas mortes ocorrem em países de renda baixa e média, segundo a Organização Mundial de Saúde.
 
O câncer de mama tem consequências especialmente graves. Em todo o mundo, é o câncer mais comum entre as mulheres e a maior causa de morte por câncer entre as mulheres, com 1,6 milhão de casos e mais de 450 mil mortes anualmente.
 
Os índices de sobrevivência variam consideravelmente de país a país e até no interior de países. Nos EUA, 20% das mulheres que desenvolvem câncer de mama morrem da doença. Em países mais pobres, até 60% morrem. As diferenças dependem fortemente da situação das mulheres, sua consciência dos sintomas e a disponibilidade de tratamento médico pontual.
 
Uganda está se esforçando para melhorar o tratamento de câncer, mesmo com recursos limitados. O Instituto de Câncer de Uganda, em Campala, ganhou um hospital e uma clínica, mas faltam equipamentos para que os locais possam funcionar.
 
"A história do câncer de mama neste país é triste", disse o oncologista Fred Okuku, do instituto de câncer, que trata 200 mulheres por ano com câncer de mama. "Uma mulher encontra um nódulo em seu seio e a possibilidade de ser câncer não lhe passa pela cabeça. O termo não faz parte de seu vocabulário."
 
Mary Namata
Mary Namata vive no vilarejo de Buddo, nos arredores de Campala, numa casa de três cômodos sem água ou eletricidade que ela divide com duas netas e sua mãe idosa e cega. A única filha dela sustenta a família com seu trabalho de cabeleireira. Namata e seu marido se separaram anos atrás.
 
Namata disse que notou um nódulo em seu seio quatro anos atrás e que um médico lhe disse que o seio provavelmente teria que ser extirpado.
 
A mastectomia é muito mais comum na África que nos países desenvolvidos, devido à possível ausência dos meios tecnológicos necessários para a realização correta de uma tumorectomia.
 
Amigos e familiares disseram a Namata que a cirurgia a mataria. Ela decidiu tentar tratamentos com ervas.
 
Os tumores de Namata continuaram a crescer, e seu seio começou a doer tanto que ela não conseguia dormir. Dentro de um programa de tratamento paliativo para pessoas com câncer avançado, ela recebeu morfina. Finalmente, em 17 de julho, a dor levou Namata a procurar a clínica de câncer de mama em Mulago, aberta uma vez por semana, onde mais de cem mulheres aguardavam ser atendidas. Muitas são mandadas para casa semana após semana, com a orientação de voltarem outra hora. Mary Namata foi uma das poucas a ser examinada.
 
Médicos americanos que estavam visitando o hospital lhe deram esperança, mas disseram que seria importante tratá-la o quanto antes para reduzir o tamanho dos tumores antes da cirurgia que os extirparia. Um residente cirúrgico ugandense sugeriu que Namata fosse internada imediatamente. Namata disse que precisava encontrar alguém para cuidar de sua família, mas prometeu voltar.
 
Primeiros passos
O câncer de mama geralmente não é diagnosticado na África antes de chegar ao estágio 4, final, quando invadiu órgãos e ossos e não pode mais ser curado. Se os médicos pudessem descobrir a doença antes, poderiam melhorar em 30 pontos percentuais a chance de sobrevivência das pacientes, segundo o Relatório Mundial 2012 sobre Câncer de Mama do Instituto Internacional de Pesquisas sobre Prevenção.
 
De acordo com Okuku, para descobrir casos de câncer em estágios anteriores será preciso enviar profissionais de saúde à zona rural para ensinar e examinar mulheres.
 
Os diagnósticos anteriores na África não exigiriam mamografias. Em vez disso, especialistas esperam ensinar médicos a usar a ultrassonografia para examinar nódulos já observados pelas mulheres, identificando aquelas que precisam de tratamento com mais urgência.
 
Gertrude Nakigudde tinha 28 anos quando notou um nódulo. Imaginando que fosse jovem demais para ter câncer, só foi ao médico depois de um ano, quando já precisou de mastectomia e quimioterapia.
 
Ninguém a avisou que ela sofreria vômitos e perda de cabelos. Ela precisou comprar os medicamentos, seringas e luvas com dinheiro próprio. Uma vez seus medicamentos se deterioraram no calor e tiveram que ser jogados fora. Ninguém tinha lhe avisado que eles precisavam ser guardados na geladeira.
 
Os médicos lhe recomendaram radioterapia, mas a máquina estava quebrada.
 
A experiência pela qual passou levou Nakigudde a se unir a outras pacientes para formar a Organização ugandense de Apoio a Mulheres com Câncer, que hoje tem 50 membros.
 
Voluntárias aconselham outras mulheres e distribuem folhetos, sutiãs e próteses de mama. Sobretudo, procuram desfazer estigmas e desinformações e difundir a ideia de que o câncer de mama pode ser curado se for tratado em fase precoce.
 
Muitas mulheres do grupo foram abandonadas por seus maridos ou namorados porque têm câncer. Não são poucos os casos de mulheres que tentam manter a doença em segredo por temer que, se o fato for conhecido, ninguém vai querer se casar com seus filhos. Mulheres com apenas um seio às vezes são repudiadas, vistas como bruxas.
 
Mas, para as que de fato procuram ajuda médica, o acesso é difícil. O instituto de câncer não oferece cirurgia ou radioterapia. Para encontrar esses tratamentos, as mulheres precisam ir ao hospital Mulago, que possui o único equipamento de radioterapia do país. O grupo de Nakigudde procura expor o que descreve como sendo uma cultura de pagamento de propinas no hospital, que leva ao atraso ou à negação de tratamento.
 
Para Nakigudde, a esperança pode estar na ampliação do instituto de câncer. O número de pacientes que procuraram o instituto aumentou de 1.800 em 2011 para 2.800 em 2012. O instituto conta com seis oncologistas, os únicos do país.
 
O tratamento
Uma semana depois de ser atendida pelos médicos americanos, que desde então tinham partido, Mary Namata fez as malas e voltou ao hospital Mulago.
 
Imaginando que seria internada, levou uma mala, um garrafão de quatro litros de água e um colchonete com roupa de cama, já que os hospitais de Uganda não fornecem lençóis ou cobertores. A ativista Gertrude Nakigudde tinha falado dela aos médicos, e um cirurgião concordara em atendê-la. Conduzida por um membro do grupo, Namata abriu caminho nos corredores lotados.
 
Mas o cirurgião lhe mandou retornar na segunda-feira seguinte para ser submetida a uma mastectomia. Disse que o tratamento com medicamentos seria posterior à operação, contrariando a recomendação dos médicos americanos. Namata voltou para casa.
 
Na segunda, foi internada no hospital Mulago. Ali, aguardou por uma semana até ser examinada por outro cirurgião. Como tinham feito os médicos americanos, este lhe disse que seria melhor tomar remédios para tentar reduzir o tamanho dos tumores antes da cirurgia.
 
Namata começou a duvidar de que pudesse sobreviver. Mas conseguiu chegar ao instituto de câncer, onde começou a ser submetida à quimioterapia.
 
Ela telefona para Nakigudde quase todas as noites para receber conselhos sobre alimentação e ouvir que seus cabelos vão crescer novamente. Os medicamentos de que o instituto dispunha acabaram, então ela própria precisa comprar os remédios usados na quimioterapia.
 
Mas os tumores parecem estar encolhendo. Namata não precisa mais de morfina. Ela espera fazer a cirurgia em alguns meses. E reza para sobreviver.
 
The New York Times/ Folha de São Paulo

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