Maus-tratos na infância e na adolescência levam a alteração em sistema
psiconeuroendócrino (NIH)
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Agência FAPESP – Uma pesquisa realizada na Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP)
verificou que o chamado estresse precoce – termo que engloba tanto
traumas e maus-tratos físicos como abusos sexuais e emocionais sofridos
por crianças e adolescentes – pode agravar quadros de depressão na vida
adulta
Coordenada por Mario Juruena, professor no Departamento de
Neurociências e Ciências do Comportamento da FMRP, a pesquisa detectou
registros permanentes no cérebro de quem passou por esse tipo de
estresse e estabeleceu um meio de identificar a relação entre causa e
efeito em diferentes tipos de depressão.
Em parceria com o professor Anthony Cleare, do King’s College London, instituição britânica que mantém acordo de cooperação com a FAPESP, Juruena identificou alterações no eixo hipotálamo-pituitária-adrenal
(HPA) – parte do sistema neuroendócrino que percebe as situações
causadoras de estresse – como resultado de estresse precoce em pacientes
com psicopatologias depressivas na vida adulta.
Desenvolvido em colaboração com a Seção de Neurobiologia dos
Transtornos de Humor da Unidade de Doença Afetiva do Instituto de
Psiquiatria do King’s College, o estudo avaliou a associação entre
abusos físico, sexual e emocional e negligências na infância e
alterações específicas no eixo HPA e na função de receptores de
hormônios responsáveis pelo metabolismo celular. O objetivo foi analisar
desequilíbrios provocados pelo estresse precoce em dois subtipos
prevalentes de depressão – a atípica e a melancólica.
“Buscamos avaliar quadros de depressão atípica e melancólica em
adultos com dificuldade de resposta a tratamentos, o que tende a ocorrer
com mais frequência quando há histórico de estresse precoce”, disse
Juruena à Agência FAPESP. Segundo ele, estudos anteriores e a
experiência em atendimento clínico indicam que, em geral, 50% dos casos
de depressão não respondem ao tratamento.
Os pacientes estudados foram divididos em três grupos distintos. Em
todos foram medidos os níveis de secreção do hormônio cortisol e suas
correlações com os receptores.
O primeiro grupo foi formado por pessoas com histórico de estresse
precoce e quadros de depressão. O segundo, por pessoas com quadros de
depressão, porém sem histórico de estresse precoce. No terceiro (grupo
controle), foram reunidos indivíduos saudáveis sem histórico de
maus-tratos nem sintomas de depressão.
Em todos, foi aplicado o Childhood Trauma Questionnaire (CTQ),
um tipo de questionário sobre traumas na infância com perguntas sobre
abusos sexual, físico e emocional, negligência física e negligência
emocional.
Também foi feita uma avaliação das funções dos receptores do hormônio
cortisol em cada um dos sujeitos, correlacionando os resultados
psicométricos da gravidade da depressão e do estresse com os resultados
neurobiológicos do eixo HPA e dos receptores.
Aos pesquisados, também foram ministradas substâncias corticoides,
como fludrocortisona, prednisolona, espironolactona e dexametasona.
Essas substâncias interagem com os receptores de cortisol de modo
diferente e seletivo e indicam em que receptor o paciente apresenta
disfunções do eixo HPA, por meio da secreção de cortisol – que foi
avaliado em amostras de saliva.
Oitenta por cento dos pacientes do primeiro grupo receberam o
diagnóstico de depressão atípica. Entre os sintomas desse tipo de
depressão estão a hiperfagia – tendência a comer em demasia, sobretudo
doces e carboidratos – e a hipersonia – propensão para dormir muito.
Eles são resultado de uma liberação muito baixa de cortisol pelo eixo
HPA.
Por outro lado, a maioria dos pacientes do segundo grupo foi
diagnosticada com depressão melancólica. Nesse caso, o desequilíbrio no
eixo HPA provoca a liberação de altos índices de cortisol, levando a
quadros de insônia e perda de apetite.
Genética e epigenética
De acordo com o professor da FMRP, a pesquisa indicou que o estresse
precoce exerce influência sobre as pessoas consideradas suscetíveis a
apresentar um dos subtipos de depressão na vida adulta.
Mesmo passando por eventos traumáticos na infância e adolescência, há
pessoas que não desenvolvem quadros depressivos, pois não apresentam
predisposição genética à depressão, “tendo algum tipo de resiliência”,
disse Juruena.
“Os quadros de depressão apresentam uma interação entre a
vulnerabilidade do indivíduo e o ambiente adverso em que ele viveu ou
vive. Se um indivíduo com predisposição genética à depressão sofrer
maus-tratos, os riscos de que desenvolva a doença aumentam muito. Isso
ocorre por causa de fatores epigenéticos, ou seja, pela influência de
fatores externos [ambientais, sociais, econômicos] na constituição física e psíquica dos indivíduos”, disse.
Segundo Juruena, embora a síntese de proteínas esteja relacionada à
herança genética de cada pessoa, crianças que passam por estresse
precoce têm modificadas suas características de liberação de proteínas.
Fatores ambientais exerceriam o dobro de influência nos quadros
depressivos, em comparação com fatores genéticos.
“Quando a criança sofre estresse precoce, essa informação impacta o
eixo HPA, onde deixa cicatrizes. Na vida adulta, isso torna mais grave
os casos de depressão. A pessoa deprimida passa a ter a sua condição
físico-emocional determinada por essa alteração, apresentando oscilações
nos níveis hormonais, como o de cortisol, para mais ou para menos,
dependendo do subtipo de depressão”, disse Juruena.
Trabalhos feitos pelo pesquisador apontam que cerca de 70% dos
pacientes com depressão têm histórico de maus-tratos. Além de maior
resistência aos tratamentos, também apresentam maiores índices de
recaída e de comorbidade.
“A discussão em torno de leis que proíbam maus-tratos contra crianças
considera abusos físicos, mas trata pouco dos abusos emocionais, que
envolvem destratar, humilhar e agredir uma criança verbalmente. A
agressão com palavras, no entanto, também deixa cicatrizes,
impulsionando o desenvolvimento de patologias na vida adulta, como
pudemos verificar na pesquisa”, disse Juruena.
“O abuso e as negligências emocionais no desenvolvimento de uma
criança são os fatores que mais causam impacto na gravidade da
depressão”, disse.
Estudo compartilhado
Para Juruena, que realizou doutorado e pós-doutorado no Instituto de
Psiquiatria do King’s College, o conhecimento desenvolvido sobre
depressão na Unidade de Doenças Afetivas da instituição favoreceu o
aprimoramento das pesquisas na FMRP.
“A depressão é uma doença muito resistente ao tratamento, com fatores
que podem influenciar a gravidade dos sintomas e gerar cronicidade.
Esse estudo nos permitiu chegar a dados que ajudam a corroborar tais
evidências, já apontadas em pesquisas anteriores realizadas em
colaboração com a equipe do professor Anthony Cleare”, disse.
Recentemente, segundo Juruena, outras pesquisas no Brasil também
abordaram o tema, incluindo trabalhos feitos no grupo do Programa de
Assistência, Ensino e Pesquisa em Estresse, Trauma e Doença Afetiva
(EsTraDA), também na FMRP-USP, do qual faz parte. Mas o pesquisador
destaca que são necessários novos estudos para elucidar os mecanismos
envolvidos na ligação entre o estresse precoce e quadros depressivos na
vida adulta.
Agência FAPESP
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