A ANS tem poder de polícia administrativa adequado ao cumprimento de suas atribuições, portanto deve regular o setor e exigir das operadoras a oferta de rede adequada para atendimento integral dos pacientes
Em recente julgamento, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou recurso que o Governo do Estado moveu contra decisão que proibia a destinação de 25% dos leitos de hospitais públicos administrados por organizações sociais aos planos de saúde. A decisão, conhecida como “lei da dupla porta”, foi proferida pelo desembargador José Luiz Germano, da 2ª Câmara de Direito do TJ-SP. Ele afirmou que “o Estado ou as organizações sociais por ele credenciadas, não tem por que fazer o atendimento público da saúde com características particulares”.
Surpreende a forma como o Poder Público busca a solução para problemas nas diversas áreas. Nesse caso, a reserva de uma quota de leitos apresentava-se como forma de o SUS receber pelos atendimentos realizados aos beneficiários de planos de saúde, na versão do governo estadual. Mas, por que gastar energia com “letra morta”, já que ninguém ignora a existência de legislação (federal e estadual) com o dispositivo do ressarcimento ao SUS?
Na liminar concedida, o desembargador afirma que tanto a lei que determinou a transferência de leitos públicos para os convênios privados (Lei Complementar 1.131/2010), quanto o decreto que a regulamenta (Decreto Estadual 57.108/2011), “são afrontas ao Estado de Direito e ao interesse da coletividade”. Entidades médicas e defensores do SUS criticaram o texto do decreto. De forma uníssona, apontaram para o fomento da dupla porta de entrada, que se tornaria institucionalizada. Na prática, esse mecanismo de entrada de pacientes de planos de saúde- e de um tratamento diferenciado – existe e é denunciado como nefasto ao sistema público, universal e gratuito.
Contudo, emerge da presente discussão a omissão da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em viabilizar o ressarcimento ao SUS, sempre que pacientes de planos de saúde são atendidos em hospital público, conforme determina o artigo 32 da Lei Nº 9.656/98. Esta lei dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Ainda que o Ministério da Saúde esteja agora a incentivar ações para mudar esse cenário, o sistema privado de saúde – direta ou indiretamente – tem-se favorecido economicamente por conta da ineficácia dos gestores públicos.
A ANS tem poder de polícia administrativa adequado ao cumprimento de suas atribuições, portanto deve regular o setor e exigir das operadoras de planos de saúde a oferta de rede de serviços adequada para atendimento integral dos pacientes – não basta criar Resoluções. A fiscalização da agência quanto ao cumprimento de normas regulamentadoras do setor traria uma redução na procura do SUS por parte da população advinda da saúde suplementar, que se vê sem assistência diante das negativas de cobertura para procedimentos. De outro lado, também é atribuição da ANS tornar operacionalmente viável e eficaz o ressarcimento das operadoras de saúde ao SUS, de forma a possibilitar mais recursos para a saúde pública.
No site da ANS há um quadro com dados que permitem uma ideia aproximada dos valores que, ao longo dos anos, o SUS tem deixado de receber. É certo que muito mais é devido ao SUS, considerando-se que o sistema de cruzamento de dados é complexo e precisa ser aprimorado para que todos os procedimentos sejam ressarcidos ao sistema público – e não só os cirúrgicos (Veja tabela ao lado)
Vale transcrever as palavras do desembargador relator no acórdão sobre a criação de reserva de vagas no serviço público para os pacientes dos planos de saúde. “Aparentemente isso só serviria para dar aos clientes dos planos a única coisa que eles não têm nos serviços públicos de saúde: distinção, privilégio, prioridade, facilidade, conforto adicional, mordomias ou outras coisas do gênero”. Asseverou, ainda, o relator: “não é preciso dizer que tudo isso é muito bom, mas custa muito dinheiro. Quando o dinheiro é público, tudo bem. Mas quando se trata de dinheiro público e com risco de ser feito em prejuízo de quem não tem como pagar por tais serviços, aí o direito se considera lesado em princípios como igualdade, dignidade da pessoa humana, saúde, moralidade pública, legalidade, impessoalidade e vários outros”.
Inconteste ser a saúde um dever do Estado, que transfere parte dessa responsabilidade ao setor privado, o qual cobra do cidadão pela prestação do serviço.
Oras, se o setor privado recebe pelo serviço, mas deixa de prestá-lo, imediatamente devolve ao Estado o dever de tratar o beneficiário do plano de saúde. Nada mais óbvio, então, que o Estado cobre daquele que recebeu o dinheiro para executar o serviço (e não o fez). Perfeito: essa é a saída!
*Sandra Franco, consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, membro efetivo da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico Hospitalar da OAB/SP e Presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde.
Fonte SaudeWeb
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