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sexta-feira, 15 de julho de 2011

Receita médica com colagem e ditado

Conheça iniciativas usadas por médicos para driblar o analfabetismo funcional e fazer os pacientes entenderem o tratamento

Para a sua dor de estômago é necessário tomar um medicamento a cada oito horas, durante sete dias.  A simples recomendação, escrita em letras nem sempre legíveis no receituário médico, anuncia o final da consulta.

O analfabetismo e outras tantas diferenças regionais e sociais impendem que a ordem seja, de fato, compreendida e executada pelos pacientes. O tratamento, nesses casos, termina antes mesmo de começar.

Foto: DIVULGACAO
Receita médica com colagem e desenhos feita pela médica mineira

Uma recente pesquisa feita pelo Hospital das Clínicas de São Paulo mapeou tal gargalo na capital paulista. Segundos os dados, a maioria dos usuários consegue ler a receita, mas é incapaz de compreendê-las. A incompatibilidade entre analfabetismo, analfabetismo funcional e receitas médicas, entretanto, representa a espiral de um problema ainda mais antagônico: qualidade do atendimento médico em função da demanda.

Foi durante um trabalho de campo na Etiópia que David Oliveira de Souza, coordenador da organização médico-humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras, aprendeu um novo conceito para interpretar as horas.

“A missão era em uma região pobre, rural. Ninguém trabalha com noção de hora determinada pelo relógio. Um dos pacientes me contou que para saber o horário certo que deveria tomar a segunda dose do medicamento, ele retirava uma planta da terra e a deixava na porta de sua casa. Quando ela estivesse murcha, significava que o tempo de oito horas já tinha passado e ele deveria tomar o remédio novamente.”

A realidade da África, embora distante geograficamente, é muito similar à dos moradores de rua nas principais cidades brasileiras. “Essas populações, seja na África, no Haiti ou no Brasil, não regulam o dia pelo ponteiro do relógio. A alimentação não é garantida, regrada. Não dá para dizer que ele deve tomar o medicamento antes das refeições. Para ele, isso não faz o menor sentido.”

Na avaliação do especialista, é preciso que os médicos identifiquem a linguagem, estabeleçam uma forma de comunicação condizente com o perfil do paciente. Seja ela através de desenhos, simbolismos ou uma simples conversa. O atendimento no estilo "linha de montagem" impossibilita que o momento da prescrição seja detalhado, feito com atenção.

“É sempre o prenúncio do fim da consulta, feito rapidamente e garantido apenas no papel. Não é preciso muito para ajudar o paciente. Se todos os médicos checassem o entendimento do que foi recomendado, como uma espécie de ditado, já seria de grande valia”, diz.

Reconhecer um paciente não é necessariamente questionar seu nível educacional, mas compreender o cenário no qual ele está inserido, endossa o médico. Histórias da equipe ilustram esse processo de se aproximar das necessidades de uma determinada comunidade.

Há alguns anos atrás, em uma Unidade de Tratamento na Libéria, a equipe do MSF, após algum tempo instalada, começou a notar que pessoas pararam de buscar um composto nutricional, alimento terapêutico para portadores de HIV. Ao investigar o que estava ocorrendo, a antropóloga do grupo entendeu que a embalagem do remédio dava rosto à Aids. Os pacientes que retiravam o medicamento passaram a ser estigmatizados pela população local, ao serem reconhecidos com a doença. “Era melhor ficar sem o remédio a ser rechaçado nas ruas", acrescenta Souza.

São múltiplos os problemas sociais e individuais capazes de impedir a eficiência de um tratamento. Segundo especialistas, analfabetismo funcional talvez seja ainda mais agravante. Os pacientes acham que entenderam, mas quando se encontram sozinhos com a receita não têm a mais vaga idéia de como proceder.

Para Souza, há uma relação hierarquizada entre médicos e pacientes que afasta o profissional das pessoas. “O doutor é um ser muito superior. Apresentar-se como analfabeto ou dizer que não entendeu uma indicação aparentemente simples provoca vergonha e humilhação."

Educação se tem no posto

Apesar dos entraves, não são escassas as formas de garantir que a indicação seja compreendida. Lara Rodrigues Felix, médica do Programa de Saúde da Família de Tiradentes, em Minas Gerais, inverteu a lógica de atendimento do Posto de Saúde onde trabalha.

A fila permanece longa e o tempo de espera para ser atendido é ainda maior. Lara é uma das duas médicas responsáveis por atender uma população de 11 mil habitantes em dois Postos de Saúde da pequena cidade mineira. A população idosa tem uma grande dificuldade para compreender as razões de suas dores e, principalmente, para organizar os horários das medicações.

Embora encontre resistência da equipe médica e dos próprios pacientes que a cada hora se somam à fila, ela insiste em gastar no mínimo 30 minutos em cada atendimento. Para contornar o analfabetismo agressivo que existe na comunidade, ela usa desenhos, símbolos e colagens nas receitas médicas.

“Alguns pacientes precisam tomar 20 comprimidos por dia. Para não passar o tempo em função da medicação, eles tomam todos de uma vez. Para que isso não ocorra, colo ao lado do nome do remédio, uma amostra do comprimido e oriento com calma como eles devem proceder.”

Quando o posto não tem o medicamento recomendado, Lara pede ao paciente que compre e a procure novamente. Ela repetirá a explicação e prescrição. Além do trabalho artesanal, ela sempre questiona o entendimento da receita médica. Sem pudores, pergunta se o paciente sabe ler e o faz repetir a orientação em voz alta para que ele não deixe o consultório confuso e sem tratamento.

“A receita com amostras e desenho ajuda bastante, mas com a demanda, nem sempre é possível fazer isso. A resistencia é grande. O atendimento criterioso não é o foco. Interessa que eu dê conta da demanda e não ultrapasse os horários. De qualquer forma, faz parte do meu papel educar o paciente, fazer com que ele entenda a doença que tem e como será cuidado. Se ele não aderir ao tratamento, meu trabalho foi em vão.”

Os resultados são verbalizados pelos pacientes. A intimidade e o apoio fazem com que a orientação seja seguida à risca. A especialista conta que uma paciente atendida por ela em 2009 com Transtorno Obssessivo Compulsivo, retornou este ano ao posto. Sem consulta marcada, a senhora de 40 anos queria apenas mostrar o quão bem estava. Antes de se despedir da médica, confessou que nunca havia confiado em nenhum profissinal da área até ser atendida por Lara.

Fonte IG

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