Aplicativos, carreira, concursos, downloads, enfermagem, farmácia hospitalar, farmácia pública, história, humor, legislação, logística, medicina, novos medicamentos, novas tecnologias na área da saúde e muito mais!



quinta-feira, 21 de março de 2013

Está o movimento de segurança do paciente em perigo?

Por Guilherme Barros Barcellos
 
Recentemente li artigo de Robert Wachter, expert mundialmente reconhecido em segurança do paciente, e quem cunhou o termo hospitalista, tão mal empregado no Brasil. Com ajuda da minha amiga, odontóloga e tradutora Tatiana Pires Malinsky, trago abaixo em português aquela que considero a leitura mais interessante que fiz nos últimos meses, originalmente publicada no Blog de Wachter, em fevereiro deste ano.
 
“Estes deveriam ser anos excepcionais para o movimento de segurança do paciente. Preocupações sobre erros associados aos cuidados em saúde determinaram transformações em nosso modelo de prestação do cuidado e de remuneração, de um focado no volume para outro que valoriza mais o desempenho. O novo sistema (ainda em construção) promete valorizar segurança do paciente como nunca foi feito anteriormente.
 
Mas eu nunca estive tão preocupado com o movimento de segurança do paciente como estou atualmente. Meu receio é que nós iremos olhar para trás e ver os anos entre 2000 e 2012 como a era de ouro da segurança do paciente, o que estaria bem se tivéssemos resolvido todos os problemas. Mas nós não conseguimos.
 
Uma pequena história auxiliará na compreensão do que estou querendo dizer. O moderno movimento de segurança do paciente iniciou com a publicação em dezembro de 1999 do relatório do Institute of Medicine (IOM) sobre erros associados aos cuidados em saúde, que apontou 44.000-98.000 óbitos por ano nos Estados Unidos, o equivalente a um grande avião caindo por dia. (Para ilustrar o contrário, saibam que recém cruzamos a marca dos quatro anos da última morte nos Estados Unidos decorrente de acidente envolvendo companhia aérea comercial). O documento do IOM impulsionou inúmeras iniciativas visando melhorias em segurança: de transparência, alterações nos padrões de acreditação, novas exigências educacionais, melhorias em tecnologia da informação aplicada à saúde, entre outras. Também gerou movimentos paralelos focados no aprimoramento de qualidade e experiência/satisfação do paciente.
 
A medida que eu caminho atualmente pelo Campus Saúde da Universidade da Califórnia São Francisco (UCSF), observo um ambiente transformado por este novo foco. Na área de segurança de paciente, nós analisamos ali 2-3 casos por mês, profundamente, utilizando a técnica de análise de causa raiz (ACR) – eu pela primeira vez escutei falar de ACR em 1999. Os resultados das análises abastecem as “modificações no sistema” – também um conceito estranho aos clínicos até bem recentemente. Nós hoje documentamos e promovemos cuidados via um sistema computadorizado moderno, de última geração. Nossos estudantes e residentes aprendem sobre qualidade e segurança, e a maioria desenvolve um projeto de melhoria de qualidade/segurança em saúde durante o período de treinamento. Nós não mais recebemos a agenda de 2 anos da Joint Commission; nós recebemos um comunicado 20 minutos antes. Enquanto a evidência global de melhorias em qualidade e segurança é heterogenia, nossa experiência na UCSF me conforta: temos observado índices menores de infecção, menos quedas, menos erros de medicação, menos readmissões, profissionais mais bem qualificados e melhores sistemas. Em resumo, nós temos uma organização que está bem melhor do que era há uma década atrás.
 
Então qual é o problema? Eu observo forças significativas reduzindo a resposta à segurança do paciente: a síndrome do esgotamento profissional, ou burnout (particularmente do médico) e o reposicionamento estratégico do modelo de prestação do cuidado para lidar com o Affordable Care Act. Como um pai atucanado para sair e chegar ao seu destino final, e que descobre somente no estacionamento da escola que deixou o filho em casa, nós arriscamos deixar para trás nosso movimento de segurança, se falharmos em assegurar que todos estão a bordo enquanto nos apressamos em direção ao futuro.
 
Vamos começar com a síndrome do esgotamento profissional. Quando o movimento de segurança do paciente lançou-se em 2000, esperava-se que médicos seriam adversários naturais. Afinal de contas, fale de “erro médico*” para um médico e a resposta Pavloviana é muito provavelmente “e lá vem ação judicial”. Este reflexo faria com que médicos não se tornassem entusiastas do movimento. E é evidente que nada de relevante ocorre na saúde se os médicos não estiverem engajados.
 
(* por isso costumo traduzir medical errors como erros associados aos cuidados em saúde. Assim espero que o médico não se sinta “encurralado”. Além do que, a tradução literal não explicita a amplitude do termo, que de fato se refere a qualquer erro vinculado à assistência à saúde, independente de ter sido praticado por profissional médico ou qualquer outro profissional da saúde.)
 
Entretanto, por enfatizarmos a necessidade de uma visão sistêmica – sob o argumento “não são pessoas ruins, são sistemas ruins” – muitos médicos sentiram-se imediatamente validados, alguns até mesmo intrigados, e outros (como eu) inspirados. Médicos tornaram-se de resistentes ativos para, em muitos casos, verdadeiro aliados.
 
Mas a nevasca de novas iniciativas – todas importantes, mas de forma exagerada – tem gerado sobrecarga. O problema é que ninguém alivia a carga de trabalho para realizar toda esta nova atividade. Quando pilotos de companias aéreas comerciais passam por testes em simuladores a cada ano, eles utilizam o tempo de trabalho para fazer isto. Quando eles passam 30 minutos completando um checklist antes do vôo, seus salários estão garantidos. Mas, para muitos médicos, estas novidades – aprender um novo método de raciocínio, incorporar uma lista de verificação, ou sobreviver a implantação de um novo sistema de TI – são normalmente atribuições a mais para um dia garantidamente já conturbado. Mesmo para as enfermeiras, que geralmente são assalariadas, novas obrigações como escanear códigos de barras ou mesmo lavar as mãos consumem minutos preciosos em dias onde já falta tempo.
 
Mesmo que muitos clínicos têm sido gratificados pelos seus trabalhos em segurança e qualidade, eu estou com receio que este trabalho adicional tenha contribuído para altos níveis de esgotamento profissional. Um recente estudo no JAMA documentou níveis de burnout significativamente mais altos do que na população norte-americana em geral – com quase metade dos médicos apresentando sintomas da síndrome. Obviamente, iniciativas de segurança de paciente não são a única causa. O impacto do esgotamento na segurança dos pacientes é muito real.
 
As estatísticas são problemáticas (e, como chefe da American Board of Internal Medicine (ABIM) escuto diretamente sobre muitos médicos insatisfeitos). Mas somente caiu a ficha sobre o impacto disto na segurança dos pacientes durante recente entrevista com o Prof Bryan Sexton, sociologista da Duke e expert em cultura de segurança do paciente. Eu havia entrevistado Bryan seis anos atrás para o site da agência federal que eu edito, da Agency for Healthcare Research and Quality, e eu pensei que seria um momento adequado para revisar isto. Eu preparei a entrevista armado com muitas perguntas, cobrindo tópicos como Executive WalkRounds e treinamento de trabalho de equipe.
 
Mas após 10 minutos, eu tinha eliminado todas as minhas perguntas, porque Bryan centrou-se quase inteiramente na síndrome do esgotamento profissional. Ele está percebendo médicos e enfermeiros tão sobrecarregadas que fazer com que eles pensem e ajam sobre alguma outra coisa – segurança, qualidade, trabalho de equipe – é quase impossivel. “É como a hierarquia de Maslow”, ele disse, onde pessoas não são capazes de focar nas necessidades mais importantes até que suas necessidades básicas estejam seguras. Por causa disto, ele direcionou seu foco para melhorias de resiliência – basicamente, auxiliando médicos e enfermeiros a restabelecer o prazer em seus trabalhos. Como o Dr Richard Gunderman apresentou em um artigo recente publicado no The Atlantic, enquanto redução de descontentamentos (aborrecimentos, burocracias, redução de salários, sistemas de TI desengonçados) é uma parte relevante na abordagem do burnout,
 
“…o segredo [para combater a síndrome do esgotamento profissional] está na promoção da totalidade profissional, o que dependente de um completo entendimento das origens da satisfação e da insatisfação”.
 
Seguro-me na esperança de que as melhorias nos sistemas de cuidados possam trazer satisfação aos clínicos (tanto do trabalho em si, quando dos frutos dele colhidos), como tem sido pra mim e muitos de meus colegas. Mas é importante reconhecer que para muitos médicos (e não somente aqueles que estão para se aposentar), há coisas que permanecem entre eles e a satisfação profissional.
 
A falta de evidência que todo nosso árduo trabalho está produzindo frutos também contribui para o esgotamento. Vários artigos importantes têm documentado altos e contínuos índice de danos, apesar de todo esforço. Um estudo de 10 hospitais na Carolina do Norte demonstrou ausência de melhorias entre 2002 e 2007. Em cima disso, em uma postagem brilhantemente trabalhada por Brad Flansbaum, fica evidente que quase toda intervenção que nós pensávamos que funcionaria (multas por readmissões, não pagamento para erros associados aos cuidados, pagamento por performance, tecnologia da informação, limitação de carga horária dos residentes) tem tanto falhado no funcionamento, como tem levado a consequências negativas não antecipadas. Para indivíduos que têm doado seus corações e almas para gerar um sistema que funcione melhor para os pacientes, o resultado é mais desmoralização.
 
Minha segunda preocupação sobre segurança do paciente origina-se do Affordable Care Act (ACA). Um dos seus principais objetivos, paradoxalmente, é premiar o valor mais do que o volume. Você poderia pensar que a área de segurança do paciente iria se beneficiar do ACA (o qual também inclui previsão de novos investimentos em segurança), e talvez isso eventualmente ocorra. Mas a curto prazo, o ACA é ainda outro determinante de velocidade na estrada para um sistema de saúde mais seguro.
 
Assim como os profissionais da linha de frente estão sobrecarregados e distraídos, também os CEO’s, diretores e gestores dos hospitais estão. Como o sistema de cuidados de saúde balança a partir de um modelo disfuncional para um (Deus queira) lugar melhor, lideranças estão fazendo de tudo para terem certeza que suas organizações tenham “lugares nos quais sentar quando a música parar”. As conversas em salas reuniões, que há poucos anos atrás eram focadas em como fazer sistemas melhores e mais seguros, hoje estão centradas em como se tornar uma Accountable Care Organization, como atingir alinhamento com a equipe médica, qual serão os impactos financeiros, e coisas do tipo. As pessoas seguem interessadas na otimização do valor, mas com menos ênfase no numerador da equação (qualidade, segurança, satisfação do paciente), e mais ênfase no denominador: custos.
 
Dr Gary Kaplan, diretor-presidente do sistema de Saúde Virginia Mason em Seattle, e provavelmente um dos líderes hospitalares mais admiráveis dos EUA, recentemente refletiu sobre a segurança do paciente em uma nota ao comitê do Instituto Lucian Leape da Fundação Nacional de Segurança de Paciente (ambos fazemos parte do comitê). Gary escreveu,
 
“[A] redução no reembolso e pressão por colocar o foco em finanças, tamanho e competividade de mercado têm prevalecido sobre pressões para melhorias em qualidade e segurança. Isto ocorre em parte em função do progressivo distanciamento entre líderes seniores e profissionais da linha de frente”.
 
Nós simplesmente devemos reorganizar nossos sitemas de saúde para promover o mais alto valor de cuidado. Com certeza, isto exigirá um quadro amplo, planejamento estratégico – novas relações, novas instituições, novidades em TI, e mais. Isto também dependerá da geração de uma melhor cultura, que permita àqueles que entregam o cuidado condições para melhorem o sistema. Todos juntos, isto é uma agenda cheia para gestores e profissionais da linha de frente, e é nobre.
 
Mas devemos lembrar que cuidados de saúde são prestados por humanos reais, trabalhando em organizações que são lideradas por outros humanos reais. Ignorando as pressões que ambos grupos são submetidos pode nos levar a fantasiar sistemas maravilhosos em cenários onde continuamos causando danos e mortes. Em outras palavras, estamos colocando o movimento em risco, a partir de hospitais e profissionais possuidores da anatomia de uma organização de alta confiabilidade, mas não da fisiologia.”
 
Fonte Saudeweb

Nenhum comentário:

Postar um comentário