Um dos maiores feitos teóricos da medicina foi a constatação de que doenças são provocadas por germes. Foi a partir daí que a arte de Esculápio se tornou científica e puderam surgir cuidados tão básicos como a antissepsia e drogas tão miraculosas como os antibióticos. O número de vidas salvas por essa realização acadêmica é astronômico. Não fosse por ela a Terra dificilmente teria chegado à marca dos 7 bilhões de habitantes.
O mundo, entretanto, é um lugar mais complicado do que sugerem nossas intuições e mesmo nossas melhores teorias. O biólogo Rob Dunn, da Universidade Estadual da Carolina do Norte, lançou há pouco "The Wild Life of Our Bodies: Predators, Parasites and Partners That Shape Who We Are Today" (a vida selvagem de nossos corpos: predadores, parasitas e parceiros que moldaram o que somos hoje). Trata-se de uma obra provocante, em que o autor, como bom ecólogo, mostra que a teoria dos germes, em que pese seus inegáveis sucessos, é apenas parte da história. Na verdade, nossa obsessão em criar ambientes livres de micróbios pode estar na origem do aumento da prevalência de várias doenças e até no surgimento de algumas novas.
O grande problema, sustenta Dunn, é que sempre pensamos o corpo humano como uma entidade à parte, mas, em biologia, as coisas só fazem sentido quando compreendidas na inteireza de suas relações com o meio ambiente, em especial a interação com outras espécies. É só agora que estamos pensando o homem como uma peça nesse grande quebra-cabeças, e os resultados são surpreendentes.
Comecemos com um pouco de epidemiologia. Até aqui, a tendência observada nos países ricos tem sido a de paulatino aumento da expectativa de vida, puxado pela redução da morbidade e da mortalidade de várias doenças, notadamente as infecciosas. De algumas décadas para cá, entretanto, temos verificado nas nações mais desenvolvidas um importante aumento na prevalência de moléstias como obesidade, diabetes, alergias, lúpus, artrite reumatoide, esquizofrenia, autismo e doença de Crohn, entre muitas outras. Já há quem prognostique que, nos EUA, as próximas gerações viverão menos anos que as atuais, e com pior qualidade.
A pergunta é: Por quê? O que está acontecendo? Vários elementos da vida moderna como pesticidas, poluição do ar e até vacinas já foram apontados como responsáveis, mas nada muito conclusivo contra eles foi encontrado.
A hipótese de Dunn é que, ao perseguir implacavelmente e destruir todos os micróbios que nos cercam talvez tenhamos, numa espécie de fogo amigo, atingido microrganismos aliados, que teriam um papel importante (e ainda pouco conhecido) para o funcionamento correto de nosso sistema imunológico. Sem a presença desses germes, não conseguimos nos defender adequadamente de patógenos ou, pior, nosso sistema imune entra em parafuso e passa atacar o próprio corpo.
Uma elegante sugestão de que este pode ser o caso vem da doença de Crohn, na qual as células de defesa se voltam contra o trato intestinal do paciente. Ela é caracterizada por dores abdominais, rashes cutâneos e artrite. Nos casos mais graves, o paciente passa literalmente anos vomitando e se contorcendo de cólicas. A perda de peso decorrente pode levar à desnutrição. Nessas situações, o sujeito geralmente para de trabalhar e sua vida se torna um inferno.
Nos EUA, já há um pequeno exército de 600 mil pacientes de Crohn. No Terceiro Mundo, a moléstia é praticamente desconhecida, com exceção de uns poucos casos nas camadas populacionais mais privilegiadas.
Seguindo a teoria do germes, Robert Debré propôs que a doença de Crohn seria provocada por certas bactérias que vivem em geladeiras. Há evidências, embora não conclusivas, a apoiar essa tese. Mas, nos anos 90, Joel Weinstock, da Universidade de Iowa, resolveu tentar outra abordagem. Imaginou que a moléstia poderia ser causada, não pela presença de microrganismos, mas pela ausência. Não se sabe bem como, em 1999, o comitê de ética da universidade autorizou Weinstock a testar sua ideia radical. O pesquisador recrutou 29 pacientes de Crohn e os infestou com vermes Trichuris trichiura, que causam a tricuríase. Vinte e quatro semanas depois, dos 25 pacientes que se mantinham no estudo, todos menos um estavam melhor e 21 tinham entrado em remissão, isto é, estavam livres dos sintomas.
O sucesso inspirou outros cientistas, que testaram vermes para uma série de moléstias tanto em modelos animais como humanos. Há indícios de que eles possam ser úteis no diabetes, na esclerose múltipla e até em doenças cardíacas.
É claro que tudo isso ainda é muito incipiente e precisa ser confirmado por mais pesquisas, mas não há muita dúvida de que é um campo a explorar.
O livro de Dunn não se limita, porém, a vermes e à doença de Crohn. Ao contrário, é uma obra ampla, muito bem escrita e cheia de surpresas, ao descrever as complexas interações entre o homem e os demais seres vivos que habitam suas entranhas e seu entorno.
Ele nos conta, por exemplo, que devemos esquecer tudo o que aprendemos na escola sobre o apêndice. Ao que parece, não se trata de um órgão vestigial, que estaria desaparecendo por ter-se tornado evolutivamente inútil. Ao contrário, ele é mais desenvolvido nos seres humanos do que em seus parentes primatas. Seria uma espécie de berçário das bactérias que nos auxiliam no processo de digestão. Ali elas seriam mantidas num lugar seguro para recolonizar o intestino depois de episódios de diarreia severa, como os provocados pela cólera.
E o próprio papel dessas bactérias é, hoje, ambíguo. É verdade que elas são uma boa parte de nós. Constituem algo como 10% de nosso peso e são cem vezes mais numerosas que as células de nosso corpo, isto é, as que carregam o nosso DNA. No passado darwiniano, foram também bastante úteis, nos fazendo aproveitar 30% mais das calorias que ingerimos. Mas, hoje, com a farta oferta de alimentos, fazem parte do coquetel que contribui para a epidemia de obesidade. Acabar com elas tomando doses maciças de antibiótico pode até funcionar no curto prazo, mas, como vimos no caso da doença de Crohn, é bastante provável que essa dieta antibacteriana resulte em novos e desconhecidos problemas.
Não pretendo, porém, estragar todas as deliciosas (e às vezes nojentas) surpresas do livro. Apenas para estimular a curiosidade do leitor, adianto que ele mostra como patógenos nos fizeram perder o pelo e nos tornaram xenófobos e como cobras contribuíram para o desenvolvimento de nossa visão.
"The Wild Life" é uma leitura estimulante e que, ao mesmo tempo, serve como poderoso "reality check" (controle de realidade), ao mostrar que mesmo nossas mais exitosas teorias médicas, como a dos germes, precisam de vez em quando ser reavaliadas e reinterpretadas, mesmo que jamais venham a ser abandonadas. É a ciência em movimento.
Fonte Folhaonline
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