Especialista em abuso de drogas explica como o vício inibe a capacidade de resistir ao uso e porque a internação contra a vontade ainda é uma questão controversa
“Eu sou viciado em analgésicos”, disse J., um atarracado trabalhador da construção civil, em uma tarde na sala de emergência, com a esposa ao seu lado. Dois anos antes, depois de meses de dor, rigidez e inchaço nas mãos e pescoço, o clínico geral de J. havia lhe dado um diagnóstico de artrite reumatoide e prescrito três medicamentos: dois para retardar a doença e outro, oxicodona, para a dor.
Amparado pelo analgésico, J. se sentiu mais ágil e ativo do que em todos os últimos anos que vivera. “Finalmente consegui ficar à altura dos outros caras”, disse.
Ele começou a trabalhar ainda mais e a dor piorou. O clínico geral aumentou a dose de oxicodona. Não demorou até que J. começasse a desejar mais o barato do que o alívio que os comprimidos traziam. Ele consultou dois outros médicos que, sem saber que ele já estava recebendo receitas de outros, prescreveram medicamentos similares. Quando um colega de trabalho se ofereceu para lhe vender analgésicos sem intermediários, a situação saiu de controle.
No momento em que eu o vi, ele estava tomando dezenas de comprimidos por dia, muitas vezes os esmagando e cheirando para acelerar o efeito. Com uma franqueza notável, ele descreveu como as drogas tinham marcado todos os aspectos de sua vida – desde dias de trabalho perdido até dívidas crescentes, estado de saúde em deterioração e tensões conjugais. Porém, quando eu listei as opções de tratamento que poderiam ajudá-lo, J. balançou a cabeça, olhou para mim e para a esposa, e se levantou.
“Eu consigo ficar bem”, disse ele, levantando as mãos. Em seguida, saiu da sala. O desespero tomou o rosto de sua esposa. "Por favor", disse ela, agarrando o meu braço, "você não pode deixar que ele saia".
Por duas vezes, ela havia encontrado o marido caído no chão do banheiro na semana anterior. Nas duas ocasiões, não conseguiu despertá-lo. Embora ela tenha ligado para o 911, número de atendimento de emergências nos Estados Unidos, o hospital liberou J. poucas horas depois de ele ter sido admitido e insistido que a overdose havia sido acidental.
“Eu simplesmente sei que vou voltar para casa um dia e encontrá-lo morto”, disse a mulher.
Ela tinha bons motivos para se preocupar. O abuso de medicamentos prescritos é o problema de vício em drogas que mais cresce nos Estados Unidos. A cada 19 minutos, alguém morre em decorrência de uma overdose de medicamentos nos Estados Unidos, o triplo do índice registrado em 1990. E de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças, os analgésicos (como a oxicodona) são os grandes culpados disso. Há mais mortes de pessoas motivadas pela ingestão dessas drogas do que pelo uso total de cocaína e heroína. No entanto, embora compartilhasse da preocupação da esposa de J., havia pouco que eu pudesse fazer para forçá-lo a ingressar em um tratamento.
Meu hospital fica em Rhode Island, um dos pouco mais de dez estados onde não existe tratamento obrigatório para alguém como J. (isto é, alguém que não está sob a competência do sistema de justiça criminal). Se J. fosse morador de Massachusetts, nas proximidades – ou de um dos mais de 20 outros estados que permitem o tratamento involuntário da dependência – eu teria sugerido que sua esposa pedisse a um juiz que forçasse o marido a se tratar. Se tivéssemos nos encontrado em qualquer de uma dúzia de outros estados, eu poderia, por conta própria, ter internado J. – contra a sua vontade, por até vários dias.
Os requisitos para o tratamento involuntário do vício variam amplamente em todo o país, desde o uso da substância representar um grave perigo para alguém, para os outros ou para os seus bens, até o comprometimento do discernimento para a tomada de decisões, ou até mesmo algo tão vago quanto perder o controle sobre si mesmo.
Os estados abordam o tratamento obrigatório da doença mental com uma uniformidade muito maior. Nesse caso, ele é permitido em todos, e quase todos o restringem aos casos em que o paciente representa um perigo imediato para si mesmo e para os outros.
Essa norma comum deriva de uma série de processos judiciais federais que estabeleceram requisitos processuais e materiais para declarações de saúde mental. Mas embora a admissão de dependentes que não aceitaram ser tratados não seja nova, ela tem recebido bem menos atenção judicial.
Em um caso de 1962, Robinson v. Califórnia, o Supremo Tribunal considerou que embora a condenação declarada exclusivamente por conta da dependência de drogas fosse inconstitucional, "os estados podem estabelecer um programa de tratamento obrigatório para os viciados em narcóticos". Muitos o fizeram, outros não. O alto tribunal ainda tem que rever a questão.
Outro fator complicador é discordância da sociedade quanto à definição de vício: uma doença, uma falha moral ou um meio termo entre os dois. Muitos (muitas vezes os próprios pacientes) veem o abuso de drogas simplesmente como uma escolha. Sob este ponto de vista, justificar a autonomia perdida e a despesa para os contribuintes que sustentam o tratamento obrigatório se torna algo difícil.
No entanto, cada vez mais pesquisas têm revelado que a situação da dependência é muito mais complicada do que isso. Os conceitos cognitivos que nós normalmente associamos à "força de vontade" – motivação, determinação e capacidade de adiar a satisfação, resistir aos impulsos, considerar e fazer escolhas entre alternativas – surgem de diferentes vias neurais no cérebro.
Os elementos característicos do abuso de drogas – desejo, intoxicação, dependência e retirada – correspondem às interrupções desses circuitos. Uma série de fatores genéticos e ambientais serve para reforçar ou atenuar esses efeitos. Esses dados ressaltam as maneiras poderosas por meio das quais o vício constrange a capacidade de resistir.
A existência irregular de leis ligadas ao tratamento involuntário para o vício criou algo estranho na Medicina: um cenário em que o padrão de atendimento difere radicalmente de um lugar para o outro. Mas há indícios de que mudanças estão a caminho. Em março, o Estado de Ohio aprovou uma lei autorizando internações involuntárias relacionadas a substâncias. A Pensilvânia está considerando um projeto de lei semelhante.
Em julho, o Estado de Massachusetts estend eu seu prazo máximo de tratamento involuntário de vício de 30 para 90 dias, um movimento impulsionado pela crescente epidemia de abuso de opiáceos na região. No mesmo mês, no entanto, a Califórnia encerrou seu programa de tratamento involuntário do abuso de drogas.
Essas mudanças chegam em um momento em que cada vez mais seguradoras privadas se recusam a cobrir até mesmo internações breves para tratamento do abuso de opiáceos, e em que os estados vivenciam uma séria escassez de recursos. Ainda assim, embora períodos curtos de internação involuntária façam sentido intuitivamente – proteger o paciente até que os efeitos da intoxicação se atenuem – há surpreendentemente poucos indícios sugerindo que um período de tratamento involuntário mais longo possa levar à abstinência ou impedir o comportamento que justificou a internação forçada do paciente. A ciência deve orientar a elaboração dessas leis; porém, por enquanto, não há embasamento empírico que as sustente judicialmente.
Enquanto observava o rosto pálido da esposa de J., decidi falar com ele novamente. Sem ter mais recursos para insistir que ele ficasse, eu sabia que ela queria que eu mudasse a opinião do marido. Ele estava perto da saída, de braços cruzados, com casaco fechado. Esperei ao lado dele. Por vários momentos, ele não disse nada. Então, eu me perguntei em voz alta se ele temia a dor física que existia para além de seu vício. Sem olhar para mim, concordou.
“E se pudermos encontrar uma maneira de tratar a sua dor e também dar um fim à dor que ela está causando a você e à sua família?”, perguntei. “Talvez, juntos, possamos ajudá-lo a ter a sua vida de volta.”
J. parou por um momento para considerar minha oferta. Por um instante, sua expressão se suavizou. Então, sem mais demora, sacudiu a cabeça e foi embora. A esposa o seguiu, em lágrimas.
* Por Paul Christopher (professor assistente de psiquiatria e comportamento humano da Universidade Brown)
Fonte iG
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