"Aceitar o erro médico como parte de qualquer trabalho é o primeiro passo para evitá-lo, pois torna o ser humano mais vigilante"
Um alerta vermelho preocupa a saúde no Brasil: os sucessivos casos de erros médicos. Porém, é difícil responder se hoje há mais erros na prestação de serviços de saúde ou se os pacientes estão mais atentos aos seus direitos. Fato é que sucessivos problemas envolvendo acidentes em hospitais brasileiros são alardeados cotidianamente na mídia e merecem uma análise cuidadosa sobre suas causas.
Como justificar que uma criança receba um ácido usado para cauterização de verrugas (ácido tricloroacético) em lugar de sedativo? Como se aceitar que bebês sejam vítimas do mesmo erro: receber leite na veia ao invés de soro? No Distrito Federal, foram necessárias treze mortes para que se percebesse a existência de defeito na tubulação de um leito que levava ar comprimido em lugar de oxigênio ao pulmão dos pacientes.
Outro evento que eclodiu na mídia no ano passado foram as denúncias trocadas por médicos de um hospital no Rio de Janeiro e que se tornaram públicas. Nas mensagens, os profissionais se referiam aos erros do cotidiano: uma peça cirúrgica esquecida em paciente; a orientação para a rápida ocupação de leitos na UTI, a fim de evitar transferências externas; o adiamento de cirurgias por falta de material e o isolamento inadequado de paciente com doença infecciosa. Não se têm notícias da apuração desses fatos.
Recentemente, no Centro Hospitalar de Sorocaba (CHS), foi encontrado um inseto dentro do respirador de uma criança internada na UTI pediátrica da unidade. O aparelho estava desligado. Mas, se fosse ligado inadvertidamente?
A causa, quase sempre, está relacionada a uma falha humana. É essencial, desta forma, refletir sobre como evitar a ocorrência de novos casos. Prevalece, no Brasil e no mundo, a enorme dificuldade em se rastrear a origem desses problemas. O medo da punição impede que o erro seja analisado, o que é negativo para todo o sistema de saúde, pois se perpetuam processos internos fadados a falhas, por vezes fatais, como ocorre na administração errônea de medicamentos, pacientes mal identificados que sofrem cirurgias em membros errados, equipamentos sem manutenção, enfim.
A solução, ainda de difícil aplicação prática, estaria em tratar o erro médico como parte integrante de um sistema, criando-se mecanismos de investigação que permitissem o conhecimento da real dimensão do problema. O Ministério da Saúde, atento ao número crescente de problemas, divulgou recentemente, o Programa Nacional de Segurança do Paciente, que institui seis protocolos de segurança. O objetivo é diminuir a ocorrência de erros e falhas durante o atendimento e internação de paciente nas redes pública e privada, seguindo as recomendações preconizadas pela OMS – Organização Mundial da Saúde – desde 2004, quando da criação da Aliança Mundial para a Segurança do Paciente (World Alliance for Patient Safety), cuja meta é a diminuição de uma tendência revelada pelos números: um em cada dez doentes internados sofre um erro médico, via de regra, com consequências econômicas, humanas e sociais.
Há pouco tempo, anunciou-se a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Erro Médico. A proposta é ’a de serem apurados erros dos dirigentes, médicos e demais profissionais de hospitais públicos e privados que resultarem em lesões físicas e óbitos de pacientes. A investigação se estenderá a atuação dos conselhos profissionais, do Ministério Público, do Poder Judiciário, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).. No requerimento para a instalação da CPI foram citados os casos de grande repercussão que justificariam tal CPI. Entre eles, a morte do então secretário de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Duvanier Paiva Ferreira, o qual teria sido levado a dois hospitais particulares da cidade mas, sem talão de cheques, teve o atendimento negado e morreu de infarto agudo do miocárdio. Outro se refere à morte do adolescente Marcelo Dino, de 13 anos, atendido e internado no Hospital Santa Lúcia em fevereiro do ano passado. A única médica de plantão na UTI Pediátrica teria deixado o posto para fazer um parto e, quando voltou, não conseguiu prestar o atendimento quer pudesse salvar a vida do menino, que era filho de Flávio Dino, presidente da Embratur e ex-deputado pelo PCdoB.
Embora o atendimento no hospital seja entendido hoje como uma atividade multiprofissional, por vezes, a responsabilidade apurada acaba por ficar entre dois polos: o médico e o hospital. O atendimento gera um contrato entre o médico e o paciente, mas entre paciente e hospital se estabelece um contrato mais amplo, já que não se restringe aos cuidados médicos, entre o hospital e o paciente, que traz como conseqüência poder ser o hospital responsabilizado em caso de dano a um paciente. Este contrato amplo do hospital com o paciente abarca também as atividades complementares ao atendimento do paciente, entre elas: enfermagem, serviço de controle de infecção hospitalar, limpeza, recepção, transporte e serviços complementares de diagnóstico e tratamento (laboratório, radiologia, hemoterapia, fisioterapia, nutrição).
Entre o paciente e o hospital está presente uma relação de consumo, com todas as suas características e implicações legais. Ressalte-se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento no sentido de empregar o Código de Defesa do Consumidor (CDC) na relação médico e paciente (assim como paciente e estabelecimento de saúde). Na esmagadora maioria das vezes, inverte-se o ônus da prova. Ou seja, ao médico caberá a obrigação de provar que não cometeu irregularidade, ainda que a responsabilidade seja subjetiva e dependa, portanto, da presença de culpa do profissional para que haja condenação.
Sem a pretensão de eleger um “bode expiatório”, pode-se afirmar que cuidados mínimos poderiam ser tomados pelos hospitais, como, por exemplo, a simples identificação de medicamentos, utilizando cores distintas e locais distintos de armazenamento. De toda sorte, parece-nos descabido que somente o técnico em enfermagem, enfermeiro ou médico sejam punidos exemplarmente. Talvez esses profissionais envolvidos em acidentes diários dentro dos estabelecimentos de saúde devessem também ser tratados como vítimas, porque o são.
É essencial a melhoria das condições dos trabalhadores do setor: ausência de estrutura física e humana culmina em mau atendimento dos usuários dos serviços de saúde. Evidente que as condições degradantes em que trabalham os profissionais, em especial na rede publica, com excessiva carga horária necessária garantir sua renda mensal, não são positivas para qualquer um dos envolvidos na prestação dos serviços: o prestador e o paciente.
Inconteste que são necessárias reformas sanitárias. Indiscutível ser o gerenciamento de riscos uma condição sine qua non em saúde. Nas instituições mais conceituadas no Brasil há algum tempo adotam-se protocolos que envolvem pessoas, materiais, medicamentos, equipamentos e instalações e inibem a ocorrência de falha humana. Os hospitais, clínicas e consultórios têm investido em controle de processos e buscado certificações internacionais que avalizem a segurança do paciente dentro daqueles locais. Mas, não basta.
Como qualquer outro setor, a saúde tem de investir em educação. É essencial que sejam revistos os currículos tradicionais das Faculdades de Medicina a fim de que os futuros médicos estejam conscientes doa fundamentos básicos para se evitar o dano ao paciente. Da mesma forma, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas auxiliares de enfermagem, técnicos, precisam ser formados para não cometem erros que poderiam ser evitados com cuidados preventivos: lavar as mãos, checar nomes de pacientes, observar prescrições e fazer um check list antes e após um procedimento.
Aceitar o erro como parte de qualquer trabalho é o primeiro passo para evitá-lo, pois torna o ser humano mais vigilante. Nenhum profissional pode agir sem se responsabilizar pelas consequências. Pode ser difícil mudar e adotar novas posturas, mas é essencial. Citando Nietzsche: “Não há realidades eternas nem verdades absolutas”. E a Medicina sabe bem disso.
*Sandra Franco é sócia-diretora da Sfranco Consultoria Jurídica em Direito Médico e da Saúde, do Vale do Paraíba (SP), especializada em Direito Médico e da Saúde, membro efetivo da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico- Hospitalar da OAB/SP e Presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde (ABDMS)
Fonte Saudeweb
Nenhum comentário:
Postar um comentário