“E se fosse sua mãe”, artigo publicado no Jornal o Globo em 17/11/2011, discute vários aspectos relacionados às políticas de saúde em geral e à assistência aos pacientes em particular, destacando esse antigo axioma para pontuar o cotidiano de quem precisa ser assistido em seus problemas de saúde.
Nos hospitais, os pacientes internados fazem parte de um cenário interessante. Ao mesmo tempo em que a cada dia mais e mais organizações alcançam o selo de Acreditação, ou se destacam por serviços assistenciais prestados, são inúmeros os exemplos em que a abordagem direta do paciente e a condução médica propriamente dita carece de atenção, dedicação, presteza e competência em favor destes mesmos pacientes. É realmente difícil compreender como é que, apesar de tanta discussão acerca de melhoria de processos, da própria concepção processual no cotidiano dos hospitais, e de seus incontáveis filhotes (diretrizes, normas, protocolos, indicadores e rotinas, dentre outros), na linha de frente do trabalho as coisas não estejam acontecendo conforme se espera que aconteça: qualidade assistencial, resolutividade e eficácia na aplicação dos recursos disponíveis dentro da melhor evidência clínica, dentro de um ambiente de integração multidisciplinar, respeito mútuo e principalmente respeito ao paciente internado.
Não faltam tentativas de explicação para isso. A mais corrente é que faltam abordagens humanísticas nos currículos das universidades, que insistem em eternizar o desprezo às ciências sociais, aos princípios da bioética e às noções básicas de outros conhecimentos tão importantes quanto o conhecimento técnico (principalmente quando falamos de um profissional que lida diretamente com o ser humano em todas as suas dimensões), tais como a antropologia, a psicologia e a filosofia. Eu tenho outra teoria, menos acadêmica e mais pragmática. E que é mais preocupante.
Hoje, com a necessidade de maiores investimentos em saúde e o avanço na quantidade de hospitais pelo país, tendo como um dos maiores motores as necessidades legais e políticas cobradas aos governantes, o produto “médico” ficou extremamente valorizado. Que o digam os gestores municipais dos mais de dois mil municípios do país. Destes, 497 não dispõem de um único profissional prestando qualquer tipo de assistência, excluindo aqueles que pagam valores elevadíssimos para profissionais trabalharem na forma que desejarem, levando a uma atenção descontinuada, itinerante, frequentemente mercantilista e sem compromisso (veja mais em http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,com-apagao-de-medicos-rincoes-do-pais-esperam-por-profissionais-importados,1033226,0.htm).
Nada mais estimulante para os que se dizem sábios e têm muitas soluções na ponta da língua, geralmente inexequíveis ou pouco ortodoxas, tal como se vê no debate acerca da importação de médicos. Nos hospitais de grandes centros a realidade não é muito diferente, e só quem já esteve à frente de um serviço de saúde sabe o quanto é angustiante conviver com lacunas em setores essenciais, tais como emergências, UTI’s e diaristas, sem contar os demais. O dilema é: redimensiono minha estratégia de ação para aquele setor em função de não encontrar o profissional que preciso (deixando muitas vezes de atender a uma necessidade), ou aloco qualquer um que se disponha a ocupar esse espaço, para não deixar de mantê-lo em funcionamento? Ambas as decisões podem levar a consequências tão ruins que podem colocar em risco a própria carreira do gestor.
As diferenças entre o profissional com maior experiência e percepção de vida para aqueles que tendem a reproduzir o comportamento cada vez mais comum de fazer o necessário, o restrito, aquilo para o qual foi treinado (e muitas vezes nem isso), costumam se traduzir num clima de maior cordialidade e bom humor, de cortesia e respeito, de cuidado e atenção para aspectos nem sempre tão técnicos, mas que fazem grande diferença no trato com pacientes internados e com a equipe multidisciplinar. Equipe que trabalha nessa atmosfera contagia e influencia positivamente a eficiência das ações e o impacto na melhora da saúde do paciente. Este, por sua vez, dá voz à sua percepção e irradia sua experiência positiva para as pessoas de seu relacionamento, perpetuando um ciclo virtuoso de disseminação de informações que culmina com mais e mais pessoas interessadas em procurar aquele hospital, ou aquele setor, ou aquela equipe, e por fim, aquele médico tão bem falado.
O paciente é objeto maior e único da atenção médica. É para isso que o médico é treinado. Tem que dar uma resposta à altura das expectativas daqueles que investiram na sua formação, daqueles que pagam pelos seus serviços, daqueles que buscam a sua ajuda profissional e de toda a sociedade. Não há como fugir disso. Esqueçamos os demais aspectos periféricos e concentremo-nos nessa ideia central.
Eis aí grande nó. Enquanto todos os personagens envolvidos no negócio saúde, sejam agentes públicos ou privados, não valorizarem o trabalho assistencial como um todo, e o trabalho médico em particular, não deveremos ver nenhum avanço em relação ao que aí está. Mas enquanto isso, na hora de cuidar de alguém que lhe é destinado para receber seus serviços profissionais, ou que o procura de forma espontânea, não custa se fazer uma perguntinha simples e direta: e se fosse a minha mãe?
Fonte SaudeWeb
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