A história da terapia intensiva contada por médicos fundadores e por dois pacientes que estão internados há 4 décadas
Quando Paulo Henrique Machado foi hospitalizado com 1 ano e três meses de vida, os médicos tinham quase certeza de que ele não apagaria as velas do segundo aniversário.
Na mesma época, a médica clínica geral Mariza D’Agostinho Dias também assistia inconformada aos baixíssimos índices de sobrevivência dos doentes graves que, assim como Machado, precisavam de acompanhamento constante de várias áreas médicas.
Em uma coincidência temporal, os dois marcam o início da história das unidades de terapia intensiva (UTIs) no Brasil, nos anos 70. Ele como paciente. Ela como médica.
Quatro décadas mais tarde, Paulo Henrique Machado permanece internado em um dos leitos de atenção permanente no Hospital das Clínicas de São Paulo. Ele está vivo (muito vivo), tem o diploma do Ensino Médio e quer fazer faculdade de cinema. Três conquistas improváveis para quem leu os prontuários clínicos que descreviam a sua paralisia infantil e provavelmente impossíveis caso o conceito de UTI não tivesse nascido pouco depois do nascimento e da hospitalização de Paulo.
Mariza Dias também permanece na ativa como médica intensivista, no Hospital 9 de Julho, onde aplica a experiência que adquiriu junto com um grupo de médicos que implantou as primeiras UTIs brasileiras nos hospitais Sírio Libanês, Albert Einstein, São Luis e Clínicas, de São Paulo.
“Só neste último mês, atendi cinco pacientes que tenho convicção de que não sobreviveriam não fossem os métodos e os equipamentos que usamos na terapia intensiva”, diz.
“Esta especialidade da medicina é a uma das grandes responsáveis pelo aumento da expectativa de vida do brasileiro. UTI já foi encarada como corredor da morte. Hoje, sabemos, ela é um corredor da vida.”
O conceito
O espaço que reúne conhecimentos de ortopedia, cardiologia, pneumologia e cirurgia foi idealizado nos Estados Unidos, em 1969, para cuidar não só dos pacientes, mas da saúde e da sanidade dos próprios médicos. Até então, os especialistas ficavam espalhados pelo hospital e o paciente submetido a uma operação de grande porte, por exemplo, exigia empenho e dedicação total só do cirurgião responsável pelo procedimento.
Sendo assim, após 12 horas coordenando os bisturis, o especialista ainda tinha de monitorar batimentos cardíacos, oxigenação e qualquer outra sequela do paciente, sozinho, sem o apoio dos outros setores hospitalares. Caso surgisse uma complicação, o tempo gasto para acionar um outro especialista era crucial. E, muitas vezes, os sinais que indicavam problemas só eram percebidos tarde demais para uma intervenção precoce.
“Ficou nítido que precisávamos de integração. Nasceu em 1971 no País o conceito do departamento de cuidado intensivo, com profissionais que conheciam clínica médica, anestesia e aparelhagem. Tudo ficou ao alcance de um clique”, lembra Elias Knobel, um dos médicos que trouxe a UTI para o Albert Einstein.
Simultaneamente, lembra Marcos Knibel – um dos primeiros cirurgiões especializados em medicina intensiva da Santa Casa do Rio de Janeiro – a tecnologia médica evoluía. Aparelhos que substituíam as funções vitais dos pacientes, como respiradores artificiais, máquinas de hemodiálise (que fazem às vezes dos rins) e monitores cardíacos também permitiram mais possibilidades aos doentes graves, aos médicos e às novas chances de sobrevivência.
“Foi uma avalanche de novidades tecnológicas, menos invasivas e mais seguras. As pessoas que antes morriam, passaram a não morrer mais”, conta Renato Terzi, responsável pela implantação da UTI do Hospital das Clínicas da Universidade de Campinas (Unicamp).
Hoje, segundo levantamento da Associação Brasileira de Medicina Intensiva (Amib), de cada 10 pacientes que entram na UTI, nove saem com vida. Há 40 anos, a mortalidade era de 30% – três vezes maior.
Prevenção e não reação
Esta concentração de aparelhos de última geração tornou a UTI um espaço onde a vida vale muito. São os “santuários” mais caros dos serviços hospitalares. Quanto mais complicações o paciente tem, mais oneroso é custear todas as intervenções necessárias.
Esta constatação – que só surgiu com o passar do tempo – fez com que a UTI deixasse de ser só a última opção e assumisse também um caráter preventivo. Profissionais de outras especialidades, como nutricionistas, fisioterapeutas e fonoaudiólogos foram inseridos no quadro de funcionários que praticam os cuidados intensivos.
“Em uma mudança de paradigma, a prevenção passou a ser prioridade da medicina intensiva. A UTI não é, e não pode ser, a última alternativa. Muitas vezes, é nela que o paciente será monitorado mesmo que seu quadro não seja tão grave.”
Esta transformação do caminho até a UTI é o que preconizam os especialistas mas não é uma realidade nacional. Segundo os médicos ouvidos pelo iG, a quantidade insuficiente de leitos impede, em especial nos serviços públicos de saúde, que o caráter preventivo seja a regra.
O último censo feito pela AMIB, que cruzou as informações de número de habitantes por leitos disponíveis constatou que 14 Estados brasileiros (53,8% do total) estão com médias abaixo do preconizado que é de 1 leito de UTI por 10 mil habitantes.
Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão, Paraíba, Alagoas, Piauí, Sergipe, Rondônia, Tocantins, Acre, Amapá e Roraima figuram entre os mais defasados, o que implica, muitas vezes, que os pacientes precisem viajar quilômetros para ter acesso aos cuidados intensivos.
Próximos passos
Ampliar as UTIs nacionais para todos os Estados e continuar investindo em tecnologia formam a espinha dorsal dos novos passos que a UTI precisa dar. Mas para Renato Terzi da Unicamp, outro avanço importante foi o conceito de humanização que chegou anos depois aos leitos intensivos e ainda precisa ser ampliado.
“Depois do encantamento com os aparelhos, a comunidade médica percebeu (e ainda precisa perceber mais) que, atrás das máquinas, existiam seres humanos.”
Não por coincidência, as histórias mais marcantes que os médicos fundadores de UTI carregam na memória são aquelas que pontuam as verdadeiras mágicas feitas por um carinho, uma televisão ou um dia de beleza na terapia intensiva. Eliana Zargui, a mulher que está há mais tempo em um leito de UTI do HC (ela está hospitalizada há 36 anos), afirma de boca cheia que não sente falta de quase nenhuma tecnologia.
“Estas eu tenho acesso a quase todas”, diz imobilizada por causa da poliomelite e com capacidade de mexer só os olhos e a boca. Mas o que nem todos sabem - mas saberiam caso olhassem seus sorrisos, sonhos e opiniões - é que por trás dos fios e maquinários, bate um coração de verdade. “Isso, ainda precisa mudar.”
Fonte IG
Nenhum comentário:
Postar um comentário