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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cérebro sofre mudanças pelo vício em cigarros

Passar das drogas lícitas para as ilícitas, em direção a um futuro que nada tem de promissor. Esse é o temor dos pais de muitos adolescentes, respaldado por uma série de estudos publicados nos últimos anos sobre como o álcool e o cigarro podem ser uma porta de entrada para o consumo de cocaína, heroína ou crack, entre outros compostos tóxicos.

A possibilidade acaba de ser explicada por uma pesquisa desenvolvida na Universidade de Columbia, em Nova York (EUA), que revela como a nicotina, presente no cigarro, aumenta a resposta do organismo à cocaína. A análise, publicada ontem na revista Science Translational Medicine, mostra como a nicotina age no corpo humano para fazer com que a pessoa, ao usar cocaína, se torne mais suscetível aos efeitos da droga.

Um dos autores do estudo, Amir Levine, do Departamento de Neurociências da Universidade de Columbia, contou ao Correio que a ideia de observar os efeitos do cigarro e, em seguida, da cocaína no organismo surgiu após ele e seus colegas notarem que muitos jovens bebiam, fumavam e, após algum tempo, começavam a usar outras drogas. “Então, fizemos testes com ratos para ver se havia alguma ligação biológica entre o vício em nicotina e o em cocaína, especificamente. Descobrimos que pessoas que fumavam e depois associavam o cigarro com o estimulante sofriam uma modificação na região cerebral chamada de estriado, responsável pelo sistema de recompensa do corpo, que provoca o vício em substâncias químicas”, descreve.

Segundo o neurocientista, foi surpreendente notar os efeitos na nicotina sobre o DNA, especialmente sobre o gene FosB, que tem como função regular a resposta do comportamento das pessoas em relação a drogas. “Esse gene aumenta a sensação de prazer, no estriado, quando um fumante também usa cocaína. Logo, pudemos concluir que quem fuma tem um maior potencial para se tornar dependente”, explica. Levine acrescenta que, durante o estudo, encontrou indícios de que o efeito do cigarro sobre o cérebro poderia tornar indivíduos mais suscetíveis ao vício em outros compostos químicos, como a metanfetamina e a heroína.

O grupo de pesquisadores comparou os resultados obtidos nos testes feitos em ratos com dados de um acompanhamento que fizeram com cerca de 2 mil ex-estudantes do ensino médio da Escola Estadual de Nova York, que tiveram seu histórico de uso de narcóticos analisado mensalmente, durante 20 anos (ver infografia). “Os resultados foram muito parecidos. A maioria dos que cheiravam cocaína era composta por fumantes, que usavam cigarros antes de se tornarem dependentes do estimulante.”

SequênciaA neurologista Márcia Lorena Chaves, membro do Departamento de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia, relata que há uma sequência bem definida no uso de drogas, na qual “o cigarro (ou o álcool) antecede o uso de maconha, que, por sua vez, precede o uso de cocaína e de outras drogas ilícitas”. Ela alerta que, apesar de estudos de base epidemiológica estabelecerem essa relação, essas pesquisas não haviam conseguido, até então, determinar causas ou mecanismo celulares que explicassem a ligação entre o uso de compostos químicos. Ela ressalta que o estudo mostra como a nicotina agiria como uma droga gatilho no cérebro — “um efeito provável de ocorrer seja se a exposição à nicotina ocorre ao fumar ou acontece passivamente, ao conviver com um fumante”.

De acordo com o psiquiatra Raphael Boechat, professor de psiquiatria e psicopatologia da Universidade de Brasília (UnB), o neurotransmissor mais envolvido no mecanismo de dependência é a dopamina, “que é a mediadora do ‘circuito de recompensas’”. Ele afirma que, entre a comunidade científica, já se sabia que os efeitos da nicotina e da cocaína no cérebro eram parecidos — logicamente, os da cocaína são mais intensos. “Essa correlação de um aumentar a ação do outro no corpo, porém, é realmente nova”, ressalta.

Dados estatísticos do levantamento domiciliar sobre uso de drogas psicotrópicas no Brasil, feito em 2005 pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e pelo Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas (Cebrid), mostram que 44% da população afirmaram ter fumado cigarro alguma vez na vida, sendo que 10,1% se consideram dependentes do tabaco. Embora a pesquisa não relacione o uso do cigarro com outras drogas, ele apresenta dados interessantes, como o de que 22,8% dos brasileiros já usaram algum tipo de droga ilícita. Em relação à cocaína, 2,9% das pessoas admitiram ter usado a droga pelo menos uma vez na vida e 0,2% assumiram ser viciados em estimulantes, entre os quais a cocaína. A estatística revela que tanto o uso do tabaco quanto da cocaína têm maior incidência entre pessoas na faixa etária dos 25 aos 34 anos e que os mais suscetíveis ao vício são os homens.

ImportânciaBoechat afirma que esse é um estudo excelente. “Considero-o relevante porque os pesquisadores tentam achar dados cerebrais para explicar a questão do vício”, completa. Segundo o psiquiatra, a análise dos profissionais norte-americanos vai além das hipóteses de que passar de uma droga para outra é uma questão essencialmente comportamental, que era a ideia mais considerada ao abordar a associação entre cigarro e cocaína.

Márcia afirma que a pesquisa é importante por analisar os mecanismos que ocorrem nas células cerebrais para entender o comportamento de adição a drogas e a associação entre o uso delas. “Provavelmente, essa análise feita em ratos abrirá caminho para outras investigações na mesma linha e permitirá aplicações do modelo de investigação em seres humanos”, estima. A neurologista diz que a relevância do estudo para a sociedade existe do ponto de vista da saúde pública, pelo alerta que os cientistas fazem em relação aos perigos da exposição ao fumo com relação aos mecanismos de vício que podem ser ativados.

Um ponto forte dessa pesquisa, destaca Levine, é enfatizar a importância de que os jovens não fumem. “Evitar fumar não é necessário apenas pelos malefícios já conhecidos que a nicotina causa, mas por agora sabermos que ela faz com que as pessoas fiquem potencialmente vulneráveis a se viciarem em outras drogas”, alerta. Ele adverte que os efeitos da nicotina no cérebro de adolescentes pode ainda ser mais perigoso, já que o organismo deles está em formação e as ligações entre os neurônios — as sinapses — existem em maior quantidade do que no cérebro de adultos.

Levine diz que outras pesquisas mostram que o álcool e a maconha teriam função semelhante à do cigarro no cérebro. É exatamente essa questão que ele e sua equipe pretendem estudar daqui em diante. “Queremos primeiro ver se o álcool ativa o mesmo mecanismo que a nicotina”, explica. “Talvez os efeitos do vício sejam parecidos, mas a ação das substâncias no corpo humano seja diferente. Precisamos investigar isso”, determina o neurocientista.

Análise de padrõesA epidemiologia é uma ciência que consiste em analisar os fenômenos de saúde/doença nas populações. Nessa área do conhecimento, busca-se compreender as causas de um problema de saúde que atinge a população, a origem da epidemia e o que pode ser feito para combatê-la e evitá-la. O epidemiologista pode estudar desde doenças infectocontagiosas até males crônicos e problemas graves entre a população, como o uso de drogas.

Fonte Correio Braziliense

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