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quinta-feira, 12 de abril de 2012

Alfinetando a acupuntura

Por Hélio Schwartsman

Um dos temas recorrentes desta coluna, que mantenho há 13 anos, tem sido a distinção entre ciência e pseudociência. Já perdi as contas de quantas vezes falei mal de homeopatia, design inteligente, ufologia, psicanálise e outras formas de religião travestidas de tecidos sapientes.

A acupuntura tinha até agora escapado a críticas, pela simples razão de que as evidências disponíveis na literatura sugeriam que ela funcionava melhor do que placebo. Isso, é claro, colocava uma dificuldade teórica. Pelo menos aqui no Ocidente racionalista, não se imaginava que os efeitos positivos da milenar arte chinesa se deviam ao fluxo do Ch´i, uma espécie de força vital, através dos meridianos corporais. Outros mecanismos biologicamente mais verossímeis, como a noção de que a dor é controlada por portais e a liberação de opióides endógenos, foram postulados. Nada, porém, ficou comprovado. A acupuntura parecia ser um daqueles casos de terapias efetivas à espera de uma explicação satisfatória.

Não foi sem surpresa, portanto, que, ao pesquisar para escrever um texto para a edição impressa da Folha, descobri que o problema talvez não estivesse na ausência de uma boa teoria, mas sim na presença de dados pouco confiáveis.

Os responsáveis por essa revelação são Simon Singh, um físico de partículas que se dedica à divulgação científica no Reino Unido, e Edzard Ernst, médico que estuda terapias complementares e acabou se tornando um crítico delas. E a obra em que apresentam seu caso é o instrutivo "Trick or Treatment", de 2008. Além de acupuntura, eles tratam em detalhe de homeopatia, quiropraxia e fitoterapia. Não são daqueles céticos absolutos que não acreditariam em elefantes trafegando na av. Paulista nem se fossem atropelados por um. Eles dizem, por exemplo, que a quiropraxia e a medicina herbal por vezes funcionam melhor do que placebo, ainda que tenhamos de ser cautelosos ao utilizá-las. Hoje, porém, vou me ater à acupuntura.

Sua primeira aparição no Ocidente foi em fins do século 17, trazida por médicos viajantes como Wilhelm ten Rhyne e Engelbert Kämpfer. Um praticante entusiasmado foi Louis Berlioz, pai do célebre compositor. Eles não compravam a filosofia do Ch´i, preferindo atribuir seus efeitos a conceitos mais tangíveis como a então recente descoberta dos impulsos elétricos nos nervos.

Era fácil animar-se com a acupuntura (e também a homeopatia) naquela época em que o que de melhor a medicina tinha a oferecer eram sangrias e remédios à base de metais pesados. A coisa caminhou mais ou menos bem até meados do século 19, quando vieram as guerras do ópio, cujo efeito colateral no Ocidente foi o desprezo por tudo o que vinha do Oriente.

Na própria China a prática caiu em desuso, pois o imperador Daoguang a via como um empecilho ao progresso e mandou retirá-la do currículo do Instituto Médico Oriental.

A acupuntura veio a ressurgir com força no país asiático após 1949, quando Mao decidiu promover toda a medicina tradicional chinesa. O dirigente não acreditava nem um pouco nessas práticas e só se tratava com métodos ocidentais. Recorrer a agulhas e chás foi uma decisão estratégica e ideológica. Era a única maneira de oferecer alguma coisa em termos de saúde na escala necessária e ainda ajudava a animar os brios nacionalistas e anti-imperialistas chineses.

Já no Ocidente, a ressurgência veio nos anos 70, depois que Richard Nixon normalizou as relações com Pequim. Foi uma febre. Médicos dos EUA iam à China para estudar a técnica e voltavam impressionados com relatos de curas miraculosas e até mesmo de grandes cirurgias feitas sem anestesia, apenas com agulhas para bloquear a dor. Talvez um pouco ingenuamente, compraram essas histórias pelo valor de face (hoje há fortes indícios de que as operações sem anestesia eram uma fraude; imagens gravadas sugerem que os pacientes estavam sob doses maciças de drogas).

O fato é que a acupuntura caiu no gosto do Ocidente e foi chancelada por importantes instituições médicas, sempre com base em trabalhos científicos. Numa revisão de 1979, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que a prática era efetiva para mais de 20 doenças, incluindo sinusite, resfriado comum, bronquite, asma, disenteria, artrite. Em 2003, a organização voltou à carga e publicou outro trabalho no qual avaliou 293 estudos. Disse que os efeitos da acupuntura haviam sido comprovados para 28 doenças, de enjoos matinais a AVC. Mais ainda, ela parecia ser efetiva para mais 63 moléstias. A OMS recomendava ainda que se fizessem mais trabalhos com vistas a descobrir se funcionaria para daltonismo, surdez, convulsões e coma.

O sucesso de público não foi menor. Na Europa, em 1990, havia 88 mil acupunturistas tratando mais de 20 milhões de pacientes.

Bom demais para ser verdade, não é mesmo?

Bem, ao que tudo indica, não é verdade.

Profissionais mais céticos não se convenceram e insistiram em que a acupuntura deveria ser investigada com mais rigor. Começaram a produzir estudos de melhor qualidade, que não apresentavam resultados tão positivos. Esses trabalhos foram avaliados numa série de revisões patrocinadas pela reputada rede Cochrane (Cochrane Database of Systematic Reviews, 2006), e as notícias não foram muito boas para os acupunturistas.

Para começar, os "papers" mostram que a prática não é efetiva para a maioria das moléstias para as quais a OMS a recomenda. De acordo com os trabalhos considerados bons pela rede Cochrane, a acupuntura não é melhor do que placebo para tratar a dependência de cigarros, de cocaína, asma, epilepsia, depressão, glaucoma, demência vascular.

As metanálises, entretanto, indicaram que pode haver um efeito superior ao de placebos para dores nas costas e de cabeça e alguns tipos de náusea.

A grande dificuldade para fazer bons trabalhos envolvendo a acupuntura está no grupo controle. Embora tendamos a menosprezar o efeito placebo imaginando que ele não passa de uma sugestão psicológica, é preciso deixar claro que, mesmo sendo uma ilusão, ele é poderoso e desencadeia efeitos fisiológicos reais. Assim, comparar um grupo que recebeu agulhadas com um grupo de controle que não foi submetido a nenhum tratamento (e era este o caso de boa parte dos trabalhos mais antigos), dá uma grande vantagem para a acupuntura, já que apenas os primeiros se beneficiam do efeito placebo.

Uma das inovações que resultou na piora da avaliação da acupuntura nas revisões Cochrane foi a incorporação de controles mais adequados. Em vez de comparar doentes submetidos a acupuntura com pacientes sem tratamento, os novos trabalhos passaram a empregar a "falsa acupuntura", isto é aplicação de agulhadas em pontos "errados" ou sem a profundidade necessária, de modo que o efeito placebo estivesse presente nos dois grupos. Quando essa metodologia é utilizada, o que antes aparecia como benefício inequívoco dá lugar a trabalhos com conclusões pouco uniformes, alguns apontando a acupuntura como melhor do que placebo, outros não.

Os golpes não param por aí. Ernst, um dos autores de "Trick or Treatment", desenvolveu uma agulha cenográfica (ela é telescópica e se retrai ao contato com a pele) que permite um controle ainda mais preciso. Ele só não é perfeito porque a pessoa que aplica as agulhadas sabe que elas não são reais, o que impede que esses estudos sejam duplo-cegos. Quando essas agulhas são utilizadas, não se destacam efeitos extra-placebo da acupuntura ("Acupuncture - A Critical Analysis", in Journal of Internal Medicine, 2006; 259:125-37).

Singh e Ernst fazem um diagnóstico preciso quando afirmam que o efeito da acupuntura vai se reduzindo à medida que retiramos os vieses dos trabalhos mais antigos. Ao que tudo indica, eles poderão minguar ainda mais nos próximos anos.

Se esse cenário se confirmar, o fato de a técnica ter recebido uma chancela do "establishment" médico e depois vê-la cassada diz bastante sobre as imperfeições de nossos métodos de avaliação. A situação não é pior porque o método científico tem mecanismo de autocorreção. Eles nem sempre funcionam, mas pelo menos existem, ao contrário do que ocorre em movimentos ideológicos e religiosos.

Os acupunturistas, é claro, tentam salvar seu edifício, afirmando que a acupuntura falsa também é mais efetiva do que o placebo. Em termos estritamente lógicos, é possível, mas a experiência sugere que, quando um discurso supostamente científico é obrigado a rever todos os seus paradigmas, ele não era tão científico quanto fazia crer.

Falta ainda uma questão importante para discutir. Muita gente argumenta que, já que o efeito placebo é real, deveríamos incorporá-lo definitivamente à prática médica. Uma mentirinha aqui ou acolá, pílulas de farinha e agulhadas mais ou menos inócuas raramente provocam reações adversas e são relativamente baratas.

É uma posição utilitariamente respeitável, mas que comporta objeções éticas. A utilização deliberada de placebos em contextos que não os de pesquisa envolve necessariamente ludibriar o paciente. No longo prazo, erode-se a confiança nos profissionais e na própria medicina. Se terapeutas alternativos podem submeter pacientes a tratamentos não provados, por que médicos não poderiam fazer o mesmo? Se farmácias homeopáticas podem vender remédios sem princípio ativo, por que os grandes laboratórios não teriam o mesmo direito?

A disseminação dos placebos talvez até tivesse alguns efeitos benéficos, mas o preço seria alto. Para utilizá-los livremente nós renunciaríamos à troca de franca e aberta de informações que caracteriza o método científico e da qual ele depende.

Fonte Folhaonline

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