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Luciana Moliterno diz que virou prisioneira da dor.
Para vencer a doença, ela reprogramou o cérebro
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Os traumas, físicos e psicológicos, podem desencadear reações doloridas – e em cadeia – no organismo. Por causa deles, o sistema nervoso central fica desorganizado e reage da mesma forma para qualquer estímulo externo.
Fome, luz, barulho e até carinho passam a ser compreendidos como dor pelo organismo, em um ciclo difícil de romper e com poucas opções de medicamentos específicos.
Os especialistas agora estão empenhados em encontrar fórmulas terapêuticas que revertam o que chamam de memória dolorida. É ela, acreditam, que condiciona o corpo a reagir desta maneira.
“Todas as nossas vivências influenciam a forma como encaramos a dor”, explica Fabíola Peixoto Minson, diretora da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (Sbed). “Algumas, no entanto, são tão marcantes que provocam uma espécie de curto circuito no cérebro.”
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Em parte significativa dos doentes com dor sem causa aparente, a origem da disfunção frequentemente é uma morte (ou doença) na família, um sequestro-relâmpago, um assalto ou até uma violência sexual, relatam os médicos.
“Após estas experiências, o tato, a temperatura, a pressão, o paladar, ficam supersensíveis. Quando estimulados, os sentidos recebem do cérebro a mensagem de que se trata de uma experiência dolorida”, completa a médica.
Cabeça, costas, pernas ou qualquer outra parte do organismo – às vezes todas ao mesmo tempo – viram pára-choque destas sensações dolorosas. Elas não são corrigidas nem mesmo por doses fortes de analgésicos e o diagnóstico leva anos para ser feito.
Além da vida social, um dos impactos mais fortes é sentido no mercado de trabalho. Mas a dor crônica também pode ser o início de uma dependência química de remédios.
“A dor deixa de ser sintoma para virar a doença”, define a médica do Centro de Dor do Hospital das Clínicas de São Paulo e professora da Universidade de São Paulo (USP), Karine Azevedo São Leão Ferreira.
Por analogia, o organismo fica viciado em sentir dor. Saber qual foi o ponto de partida deste quadro ajuda a reprogramar as sensações.
Escanteio
Pesquisas brasileiras, uma delas feita pela Faculdade de Saúde Pública de São Paulo, identificaram que, em média, três em cada dez pessoas do Brasil são portadoras deste problema. Em São Paulo, 29% têm o problema, parcela que chega a 41% em Salvador (BA) e 42% em São Luis (Maranhão) – três das capitais mapeadas.
Esta população que sofre de dor crônica pode ser composta pelas chamadas vítimas secundárias da violência urbana – sobreviventes de tentativas de homicídios, por exemplo.
Entre os que carregam estas sequelas estão também os parentes de doentes com câncer ou qualquer outro problema de saúde. Como não são os principais alvos das doenças, acabam negligenciados dos tratamentos médicos e sofrem à margem dos cuidados de saúde.
Prisão domiciliar
Luciana Moliterno, 39 anos, é um destes casos. A paulistana conta que ficou em um “cativeiro dolorido” por quase quatro anos, sem entender o que acontecia com ela. Aos 35 de idade ela virou prisioneira da enxaqueca.
“Sempre convivi com uma dorzinha de cabeça que, apesar de tinhosa, nunca tinha impedido nenhuma atividade. Até que ela virou um carrasco. A impressão é que tinha se estendido para todo corpo”.
“Eram pontadas fortíssimas nas têmporas. Só conseguia ficar imóvel. Trabalhar, comer, ficar na claridade, dançar, caminhar, tudo era uma tortura.”
Durante 24 meses, Luciana dormiu sentada pois “só o ato de deitar piorava as dores”, conta. Neste período, chegou a passar semanas sem sair de um quartinho escuro dentro da casa.
“Virei prisioneira”, diz, quatro anos depois, já em recuperação – vez ou outra ela ainda é refém de algumas crises.
Até voltar a trabalhar em seu restaurante – e arriscar passos de dança árabe, sua paixão – Luciana visitou inúmeros médicos, das mais variadas especialidades e fez todos os tipos de exames.
Escutou de amigos e profissionais de saúde “que era preguiçosa” e achou que nunca mais voltaria ao normal.
O tratamento que trouxe o cotidiano de volta envolveu medicação, psicoterapia e um “restart” cerebral, com aplicação de medicamentos três vezes por semana. Também contou com a ajuda de Monalisa e Michelangelo, os cachorros adquiridos bem no auge das crises.
"Eram eles que me faziam companhia e serviam de estímulo para voltar a andar até a esquina", lembra.
Na terapia cognitiva, ele conseguiu identificar o início de sua dor prisioneira: o dia em que o pai desmaiou em seus braços.
“Ele ficou doente, perdeu o sentido, estava sozinha e não tinha para quem pedir socorro. O susto foi tão grande que meu corpo sentiu o baque”, lembra.
“Eu tive câncer no ovário há 14 anos e enfrentei com êxito. Estou plenamente recuperada. A dor, pós-doença degenerativa do meu pai (diagnosticada depois do desmaio dele) me derrubou”.
Vai passar?
A dor é considerada crônica quando tem duração superior a três semanas. Quando o gatilho para estas sensações é o trauma, um caminho neurológico dolorido é traçado por todo o organismo.
A fisioterapeuta Mariana Schamas, cinesiologista e pesquisadora da memória de dor, diz que o principal objetivo do tratamento é fazer com que o corpo não reaja mais de forma tão vulnerável para qualquer estímulo.
Massagens, acupuntura, psicoterapia, nutrição, fisioterapia são feitas de forma integrada, focadas em desmanchar estas associações com as dores. É uma reprogramação corpórea. A pessoa reaprende a comer, fazer exercícios, trabalhar”, explica.
“O cérebro, com auxilio dos medicamentos, volta a ficar organizado e liberar o hormônio endorfina, nosso analgésico natural”, completa.
Neste processo, não há garantias de que a dor vai passar e nem em quanto tempo. Isto, afirmam todas as especialistas, depende muito do paciente e do seu histórico de hábitos de risco.
A automedicação (uma das vilãs do sintoma), o cigarro, a má alimentação contribuem para o ciclo vicioso mas, caso corrigidos, também influenciam na recuperação.
A pesquisadora de dor Eliseth Leão, em seu doutorado, estudou a música como uma importante aliada no processo de amenizar a memória da dor.
“A melodia, a letra, as lembranças trazidas com os sons podem ajudar os pacientes a encontrar qual foi o ponto de partida do desequilíbrio, enfrentar as situações e criar outras associações com hábitos corriqueiros”, diz.
A paciente Luciana Moliterno confirma os benefícios da música. “Antes, as músicas árabes me traziam tristeza, pois eu lembrava o quanto era dolorido dançar e o quanto era ainda mais doloroso pensar que nunca mais dançaria.”
“Hoje eu já consigo apreciar os sons novamente. Ainda não voltei para as aulas e os espetáculos, mas saboreio, de olhos fechados, cada som. Em pensamento, já rodopio nos salões”, diz. Alguns passos de dança dados em casa – e com aval do fisioterapeuta – são acompanhados pelos fiéis cachorrinhos Michelangelo e Monalisa.
Fonte iG
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